O Festival de Brasília que terminou na última terça-feira (24 de setembro) premiou como melhor longa de ficção Exilados do vulcão, de Paula Gaitán. O júri da crítica, do qual fiz parte, escolheu Avanti popolo, de Michael Wahrmann, e o voto popular foi para Os pobres diabos, de Rosemberg Cariry. Três ótimos filmes, sem dúvida, mas o que mais me impressionou foi outro: Riocorrente, de Paulo Sacramento, premiado “apenas” por fotografia e montagem.
A exemplo de O som ao redor, de Kleber Mendonça, Riocorrente é um filme perfeitamente sintonizado com sua época e lugar. Mais que isso: é uma obra que expressa uma leitura dessa época e desse lugar numa narrativa audiovisual potente e original.
Paulistano até a medula, o filme de Paulo Sacramento condensa a pulsação da metrópole, seu horror e maravilha, no drama de três personagens: o ex-ladrão de automóveis Carlos (Lee Taylor), o jornalista cultural Marcelo (Roberto Audio) e a inquieta Renata (Simone Iliescu), que oscila entre os dois e incita ambos a saírem do mecanismo viciado de seu cotidiano.
Há um quarto personagem, o menino negro Exu (Vinicius dos Anjos), uma espécie de filho adotivo de Carlos. São dele o primeiro e o último atos do filme: um, aparentemente gratuito (o risco feito com estilete na lataria de um carro); o outro, pleno de significação (que não vou antecipar aqui para não prejudicar seu impacto).
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Impacto sensorial
Riocorrente se ancora, por um lado, numa sólida construção dramática, em que a libido da personagem feminina é uma força catalisadora que humaniza a brutalidade de Carlos e espicaça a passividade intelectual e moral de Marcelo. Essa estrutura firme permite que a imaginação audiovisual do diretor possa se expressar livremente, em metáforas cruas e impactantes, em sua maioria ligadas ao fogo: uma cabeça que explode, um carro que se incendeia em alta velocidade, o Tietê que se transforma num rio em chamas.
Há nessas imagens uma qualidade de cultura pop, de comunicação imediata, sensorial, a enfatizar o sentimento de urgência que permeia o filme.
Violência e ternura
A própria cidade de São Paulo é personagem central de Riocorrente, não apenas porque sua caótica geografia é o labirinto por onde erram os protagonistas, não apenas porque seus ruídos onipresentes são exacerbados na trilha sonora, não apenas porque se contrastam na tela a elegância moderna dos prédios da Paulista e os becos sórdidos da periferia, mas também pela presença de figuras icônicas da cultura paulistana, como a Patife Band de Paulo Barnabé, o artista plástico Marcelo Grassmann (que morreu antes de ver o filme pronto) e o músico Arnaldo Baptista. Este último, cantando ao piano num show presenciado por Renata, sintetiza num momento sublime a violência e a ternura amalgamadas de forma inextricável na cidade. O cosmo sangrento e a alma pura, como no verso de Mario Faustino.
Essas aparições/homenagens, assim como as referências ao jornal O Estado de S. Paulo, não são nada forçadas, exteriores, mas integram-se organicamente à narrativa, acrescentando-lhe espessura. Por fim, cabe lembrar que foi esse o último filme fotografado por Aloysio Raulino (1947-2013), que amou, viveu e retratou essa cidade como poucos.
Há muito a ser dito ainda sobre Riocorrente, à medida que seu impacto for sendo assimilado e seus sentidos, decifrados. Desde já, arrisco dizer que se trata do grande filme brasileiro da temporada.