Sobre a liberdade

serrote

28.10.11

O texto abaixo foi publicado na revista eletrônica Eurozine em 16.7.2003, em tradução do diálogo em russo para o inglês. Os autores, Svetlana Boym e Boris Groys, estão entre os colaboradores do nono número da serrote, que chega às livrarias em novembro.

Neste diálogo, Svetlana Boym e Boris Groys discutem concepções filosóficas sobre a liberdade a fim de apreciar as implicações dessa noção em várias dimensões: na esfera do Estado, nas vidas privadas dos indivíduos e com relação a aspectos econômicos. Haveria alguma liberdade social num contexto em que o Estado dirige e regulamenta grande parte da vida das pessoas? Os seres humanos, como afirmou Sartre, “estão condenados a ser livres”? A liberdade implica um escape do determinismo econômico que pauta as civilizações ocidentais ou é a atividade econômica que acima de tudo nos liberta?

Svetlana Boym – É difícil começar uma conversa sobre liberdade, [1] pois a liberdade é elusiva. Os gregos a associavam com os elementos invisíveis, com o ar. Não é de espantar que eles não tivessem nenhuma deusa da liberdade. E não obstante foi na Grécia Antiga que esse invisível ar de liberdade se tornou um valor cultural.

Boris Groys – Creio que a liberdade se torna uma questão efetiva quando há uma carência prática dela. Quando uma pessoa quer fazer alguma coisa, e algo a impede, o problema da liberdade vem à tona. Essa aspiração à liberdade está sempre ligada a alguma interdição, alguma restrição ou algum obstáculo. É isso o que se chama de libertação de: libertar-se da violência, de um regime que nos oprime, da doença, da pobreza, do nosso corpo enfim (o corpo como o cárcere da alma, visto que o corpo não deixa a alma se emancipar). Mas também há liberdade para, isto é, o problema da liberdade surge quando queremos alcançar algo, realizarmo-nos, e nos perguntamos se isso é possível.

SB – Antes que possamos diferenciar liberdade “de” e “para”, porém, a própria concepção de liberdade precisa se tornar um valor cultural. Os egípcios antigos, por exemplo, entendiam liberdade como orfandade e desabrigo. Já para os gregos antigos, um indivíduo livre era um cidadão da pólis, não um órfão sem parentes e amigos. Em grego, a palavra para liberdade significa literalmente “não escravidão”, mas o “não escravo” lograva participar da vida cívica da pólis. Desse modo, liberdade não era apenas libertação da escravidão, mas também o direito à participação política e artística na vida da sociedade. Foi quando o espaço da liberdade cívica diminuiu que a concepção de liberdade interior veio à tona e os estoicos passaram a buscar “uma pólis interior, uma pólis da alma”. Repare que as metáforas para liberdade interior são derivadas da liberdade cívica. O que você acha dessa genealogia?

BG – Nessa noção, a liberdade está mesmo sendo definida negativamente. Ela é definida por oposição àquilo que nos oprime: se estávamos numa condição de escravidão, a liberdade é a saída dessa condição, ou seja, a liberdade é concebida como algo puramente negativo.

SB – A questão é o que entendemos por “negativo”. Vejamos, por exemplo, a iconografia da liberdade. Lembra-se da pintura de Delacroix em que a mulher representando a “Liberdade” está usando um barrete frígio? Isso é um traço da escravidão, uma lembrança da não liberdade, por assim dizer, o que é essencial para valorizar o ar de liberdade. Mas a liberdade não pode ser exclusivamente definida como libertação. Há uma complexa dialética entre as duas coisas. Eu até proporia uma diferenciação entre culturas da liberdade (o modelo ocidental) e culturas da libertação. Por certo, são coisas que necessitam uma da outra. Toda liberdade precisa incluir um elemento negativo de libertação de algo, mas não pode se converter num mero vento libertador varrendo tudo em seu caminho. Tem de se tornar o ar que respiramos. Ele nos causa alguma vertigem, nos inebria, mas também nos possibilita sobreviver.

BG – Contudo, nessa visão a liberdade só é definida negativamente, como libertação de algo. Mas há ainda uma concepção de liberdade positiva. Ela diz respeito à nossa capacidade de mudar a vida, mudar as condições da nossa existência, e essa liberdade nos leva a uma outra oposição. Fica claro que, nesse sentido, Leni Riefenstahl ou Albert Speer foram livres – foram livres assim como todo indivíduo, em especial todo artista, é livre caso sinta que esteja vivendo sob um regime que está reorganizando a vida inteiramente, isto é, que esteja tomando parte na realização de algum programa de caráter transcendental.

SB – Mas aí você modificou a nossa oposição. Você quer dizer que a pessoa é livre porque se identifica com algum projeto coletivo? Recaímos então na liberdade como um imperativo amplamente reconhecido?

BG – Não. Quero dizer outra coisa: liberdade negativa é libertação do projeto de outrem. Na condição de escravo, de vassalo, de alguém vivendo num sistema feudal, o indivíduo se submete à vontade de outrem. E a concepção negativa define liberdade como libertação do projeto alheio. A definição positiva de liberdade trata da possibilidade de realizar o projeto próprio. A partir do momento em que começamos a executar nosso projeto, deparamo-nos com as limitações desse projeto. Uma dessas limitações é uma sociedade regida por leis. Numa sociedade regida por leis, não podemos roubar, matar, não podemos praticar nenhum mal, e nesse sentido pode-se dizer que esta é uma sociedade que restringe nossa liberdade de cometer crimes. Mas ao mesmo tempo é uma sociedade que não nos faculta praticar o bem, uma vez que (tal como apreendemos do Evangelho) os verdadeiros atos bons, assim como o amor, só podem existir para além da lei, mediante a transformação da própria condição humana. É por isso que precisamos distinguir liberdade negativa, ou seja, libertação do projeto de outrem, e liberdade positiva, ou seja, a capacidade de um indivíduo de realizar seu próprio projeto.

SB – Você virou as categorias de Isaiah Berlin totalmente de cabeça pra baixo. Para ele, liberdade negativa é libertação de, mas também, para os cidadãos do Estado liberal, um direito político que os protege da interferência estatal em seus assuntos privados. Isso se baseia na ideia de Locke de que liberdade humana não é o mesmo que liberdade natural ou caos. As pessoas se inserem num contrato social e renunciam a uma parte de sua liberdade natural (remota) em troca de libertar-se do medo, de certa segurança que lhes permite vivenciar suas potencialidades mais livremente. Isto é, para Locke, por mais paradoxal que possa parecer, a liberdade é a cerca em volta das nossas propriedades privadas. Nossas propriedades são protegidas tanto em face de outros cidadãos quanto em face da intervenção do Estado. (Atualmente, por exemplo, estamos testemunhando um aumento do emprego da seguinte retórica tanto nos Estados Unidos quanto na Rússia: “Precisamos contornar certas liberdades civis a fim de reforçar a segurança”. No entanto, a história mostra que estreitar liberdades civis reforça no mais das vezes não a segurança das pessoas, mas o poder estatal, o que pode não ser nem um pouco seguro para os cidadãos comuns.) A lei não só é um obstáculo para a liberdade, mas também um meio para exercê-la. (Repare que estou enfatizando a lei, e não o mercado. Para mim, eles não são a mesma coisa.) Nem todas as barreiras funcionam como portões de prisão. Algumas delas descerram e fortalecem o espaço da nossa liberdade criativa, no qual podemos concretizar nossas ideias sem temer as pessoas ou o Estado. O que você está propondo é exatamente o oposto desse projeto.

BG – Vou tentar esclarecer tudo de um modo bastante simples. Suponha que eu queira construir uma pirâmide bem grande, à maneira de uma egípcia. Tenho a impressão de que numa sociedade regida por leis, democrática, será simplesmente impossível obter recursos e terras para isso.

SB – Mas suponhamos que você adquirisse um pavilhão em Las Vegas…

BG – Não, o que eu quero construir é uma pirâmide egípcia antiga, que tenha significância sacra, eleve a minha alma, preserve o meu corpo para a posteridade etc. Esse é o projeto que quero realizar. No Egito, isso era possível. E devo dizer que ainda admiro essas pirâmides: não se pode dizer que elas não deixaram um vestígio em nossa cultura. Por outro lado, sob as atuais condições legais, seria muito complicado obter recursos e mão de obra para um projeto desses, e não me parece que esse projeto seja realizável. Há toda uma série de bons projetos que podem ter uma alta significância sacra, espiritual, estética, mas são tão difíceis de realizar hoje em dia quanto os projetos negativos.

SB – Por que você não poderia construir uma pirâmide se pretendesse fazer isso em seu terreno? Digamos, se você reside em Nevada, se adquiriu terras particulares, então pode legitimamente, sem violar a liberdade de quem quer que seja, construir para si uma pirâmide com seu dinheiro devidamente ganho com trabalho criativo – suponhamos que você houvesse escrito um roteiro cinematográfico e o tivesse vendido para Hollywood por um milhão: improvável, mas não impossível… Quem o proibiria de construir uma pirâmide?

BG – A questão é que estamos integrados a um sistema de relações econômicas e legais que, como Hegel com razão observou em sua Estética, não nos permite exercer nossos princípios heroicos. Numa das seções da Estética, ele escreve que o autêntico herói cultiva ele mesmo suas uvas, produz ele mesmo o seu vinho e ele mesmo o toma. O herói molda o mundo que o cerca. Portanto, não pode ser um herói aquele que toma café e chá…

SB – E lê jornal de manhã…

BG – E mais: que precisa apresentar requerimentos. O problema é que mesmo em Nevada não consigo fazer o que quer que seja sem apresentar um requerimento. Las Vegas foi construída numa era de ilegalidade, quando tudo podia ser comprado e não havia quaisquer relações que fossem reguladas por lei. Não tenho certeza de que hoje isso seria possível. Em qualquer circunstância, a gente precisa primeiro obter permissão etc. Em outras palavras…

SB – O heroísmo é impossível.

BG – O heroísmo é impossível, a criatividade como um ato de liberdade é impossível. O problema é que se você vive numa sociedade regida por leis precisa obter permissão para tudo, e para tanto precisa primeiro solicitá-la a alguém. É claro que pode muito bem obtê-la: você não está fadado a receber automaticamente uma recusa. Mas ainda que possa obter permissão, você depende da pessoa que permite. O problema é que você não é o sujeito da decisão que aponta se aquilo que você quer fazer é ou não uma violação da liberdade de outrem. Você não é sequer consultado: é alguém que consulta outros. Desse modo, você não se depara com a liberdade de outras pessoas, mas com…

SB – A burocracia.

BG – Depara-se com a burocracia. Já que estamos falando sobre dois tipos de liberdade – libertar-se dos projetos alheios e realizar o projeto próprio -, então para realizarmos o nosso projeto hoje em dia precisamos primeiramente obter referências, recursos e permissões junto a uma porção de órgãos. Quer dizer, temos de passar o tempo amarrando e empurrando os nossos projetos. Tudo bem, não tenho nada contra isso, mas essa coisa toda indica que a liberdade acaba sendo um tanto problemática nesse contexto.

SB – Em meados do século xix, Baudelaire escreveu que o dândi era um herói, o herói da modernidade, algo assim como um Hércules desempregado. Nos dias de hoje, até mesmo essa figura do dândi herói está desaparecendo. Os pop stars não são sequer dândis, mas apenas marionetes nas mãos dos produtores. Por outro lado, porém, não era por acaso que no Egito antigo, na terra das pirâmides, os libertos se sentiam órfãos. Quem podia bancar a construção de pirâmides privadas?

BG – Não muitos, por certo. Mas o problema é que então ao menos uns poucos eram livres, ao passo que agora ninguém é. Quer dizer, houve um tempo em que ao menos parte da população não precisava apresentar requerimentos às autoridades competentes para poder fazer alguma coisa. A pessoa simplesmente pegava uma espada, uma lança ou algum outro “apetrecho produtivo”…

SB – O escudo e a espada…

BG – Sim, e seguia adiante… Hoje em dia, para fazer qualquer coisa é preciso fazer um requerimento e obter permissão. Repito que vejo esse procedimento um tanto quanto positivamente. Apenas tenho a sensação de que ele não tem nada a ver com liberdade. Acho que a liberdade simplesmente desapareceu do mundo contemporâneo.

SB – Admira-me que você fale em construir uma pirâmide como se fosse um ato estético por excelência. Isso é alguma espécie de megalomania remanescente. Afinal de contas, existe uma atividade estética de caráter totalmente diverso. Você poderia, por exemplo, criar uma miniatura, escrever um texto em letras miúdas, criar alguma coisa imaterial, e ninguém pode lhe restringir nisso.

BG – Por certo não pode. É óbvio que podemos criar objetos em miniatura. Mas para convertê-los num evento estético, é preciso expô-los e vendê-los. Para expô-los, você precisa ir atrás de um dono de galeria e perguntar se ele quer expor e vender suas obras. O galerista, por sua vez, precisa solicitar subsídios ou encontrar um colecionador disposto a adquirir esses objetos. Quer dizer, seja lá o que você faça, precisa obter o assentimento, a aprovação, a permissão e a boa vontade de uma enorme quantidade de gente.

SB – Tenho a impressão de que é isso o que você esteve fazendo nestes últimos dias em Moscou, e por isso você está tão cismado com institutos burocráticos.

BG – É isso o que estive fazendo por toda a minha vida. Mas, no meu caso, arranjar boa vontade é muito simples. Tem gente que precisa da boa vontade das massas democráticas. Um diretor cinematográfico precisa de uma porção de gente para que seus filmes sejam vistos, um escritor precisa de uma porção de gente para que seus livros sejam lidos. Para organizar uma palestra ou publicar textos como aqueles que escrevo, só se precisa da permissão de um número relativamente pequeno de pessoas.

SB – Você colocou a liberdade num patamar estético, heroico. Para mim, isso é nostalgia da Gesamtkunstwerk. [2] É como se estivéssemos conversando à sombra das pirâmides, e acho que a sua pirâmide se assenta em uma história mais contemporânea, por assim dizer – já não é tão antiga. Essa pirâmide vem a ser algo como um cenário para um filme de Leni Riefenstahl. Será que você está querendo dizer que a sociedade totalitária de certa forma dava mais liberdade ao artista, já que o artista, assim como o dirigente, tem a liberdade estética de uma Gesamtkunstwerk?

BG – Sim, sem dúvida alguma. Acho que isso está bastante óbvio.

SB – Ou seja, você prefere se satisfazer com a boa vontade de um só dirigente.

BG – Acima de tudo, o próprio dirigente não precisa da boa vontade de ninguém. E estou me perguntando se, na nossa sociedade, há alguém que possa realizar seu projeto sem ser condigno da boa vontade de alguém. Minha impressão é de que não há.

SB – Parece-me que você é adepto da ideia de que a democracia é a tirania da maioria…

BG – A maioria desapareceu. As massas desapareceram. A Igreja desapareceu. Elas todas são fantasmas. Estou falando sobre indivíduos, cada um deles, que na tentativa de realizar seu projeto – por exemplo, reformar seu apartamento, construir um galinheiro, pintar um quadro – deparam-se com um sistema de comissões, uma burocracia, órgãos regulatórios, com tudo aquilo que foi descrito por Kafka. O herói de hoje é uma pessoa que está constantemente à procura de outra pessoa para dela obter permissão e suporte. Não creio que esta seja uma situação de liberdade. Ao menos, isso conflita com a intuição de liberdade tal como a assimilamos com o leite da filosofia.

SB – Em outras palavras, você ligou a ideia de liberdade à ideia da realização de um projeto, talvez o projeto. A liberdade não seria sempre a realização de um projeto? Sentir-se livre é sentir as próprias possibilidades e responsabilidades. A liberdade não é prescrita, mas antes dada como um dom existencial. Ao conversar com você, tenho a impressão de que você se resigna à impossibilidade de liberdade. Assim como em Kafka: há um bocado de esperança no mundo, mas não para nós.

BG – Mas no existencialismo, de fato, liberdade é justamente a liberdade de realizar um projeto. Para Sartre, por exemplo, em O existencialismo é um humanismo, o homem está condenado a ser livre.

SB – Não concordo com Sartre quanto a estarmos “condenados a ser livres”. Isso é um pessimismo barato, uma pose, nada mais. Camus, Jonas ou Jaspers jamais teriam concordado com isso.

BG – O homem está condenado à liberdade dos outros. Não creio que eu seja livre, mas constantemente me confronto com o libertar-me de mim mesmo. Após as minhas aulas, por exemplo, muitas vezes pergunto aos alunos sobre suas impressões. Eles me dizem: “Bem, foi tudo tremendamente interessante, mas discordamos totalmente de você”. Então pergunto: “Com o que vocês não concordam?”. E a isso eles replicam: “Vamos ter de pensar nisso”. Isso demonstra que hoje em dia as pessoas basicamente não estão dispostas a concordar com o projeto da gente. Isto é, por um lado a liberdade para está inteiramente perdida, e por outro a libertação de está crescendo sem cessar. Acho que nos anos recentes a esfera da compulsão lógica e retórica vem sendo inteiramente aprisionada. Quando uma pessoa ouve alguma coisa minimamente racional, automaticamente a rejeita sob a justificativa de que está sendo persuadida, já que naquilo, ademais, há um elemento de compulsão lógica. Tive uma aluna que me disse que estava indo para um hospital porque havia lido um livro que eu lhe dera e aquele livro era tão lógico e persuasivo que ela sentiu uma opressão interna e o impulso de concordar com o pensamento do autor. Uma vez que essa ideia – concordar com o pensamento de alguém – lhe era totalmente insuportável, ela resolveu de maneira cabal abrir mão da sua liberdade de movimento. Assim, por um lado as pessoas não conseguem realizar nada hoje em dia, e por outro rejeitam todas as formas de compulsão, inclusive as lógicas. Desse modo, todos os modelos de liberalismo clássico e de democracia baseados no consenso discursivo, como o de Habermas, simplesmente não funcionam, já que as pessoas não querem ser persuadidas.

SB – Sim, esta é a ideia de Habermas, baseada num consenso elaborado por meio de deliberações. Mas há ainda uma outra concepção liberal de sociedade, baseada na incomensurabilidade dos modelos, projetos e atitudes. É exatamente sobre isso que Berlin escreve. O objetivo aqui não é alcançar um consenso único, mas aceitar sua impossibilidade e, não obstante, conviver sem crueldade e violência. Esse é o modelo liberal por excelência.

BG – Isso funciona! E é exatamente isso o que determina a impossibilidade de se realizar qualquer projeto. Pois sob o liberalismo só se pode realizar um projeto quando as outras pessoas concordam com ele. No entanto, a certa altura do avanço do libertar-se de essa concordância se torna impossível, e consequentemente não se pode realizar nenhum projeto. Ou seja, cada um vive com seu próprio projeto, que a priori não pode se tornar um projeto comum.

SB – Todos nós moramos em instalações de Kabakov. [3] Só que sem o Kabakov. Ele foi expulso porque chegou tarde e não obteve permissão.

BG – Lênin disse que o socialismo é o taylorismo sem o Taylor. O sistema liberal são as instalações de Kabakov sem o Kabakov.

SB – Kabakov foi despejado de suas próprias instalações! E todos nós tivemos “residência alocada” ali tal como em um apartamento comunal soviético. Um caso de consolidação espacial, de uplotnenie… [4] É nisso que dá o desrespeito à propriedade intelectual e alheia… Mas voltemos ao barrete frígio e à lembrança da escravidão. O problema talvez seja que os seus alunos têm muito pouca memória da existência não liberal. Já você e eu não esquecemos completamente. Tenho as minhas devidas recordações nostálgicas do final dos anos 1970. Acho que além dos motivos óbvios da minha partida da União Soviética houve o fato de que vi Profissão: repórter [1975], do Antonioni. Lembro que fiquei impressionada com a personagem de Maria Schneider, uma garota que passa uma noite com um jornalista (interpretado por Jack Nicholson) que está numa perpétua crise de identidade. Tomara que você se lembre dela: ela aparecia com um vestido semitransparente, seus cabelos esvoaçavam ao vento e havia uma indescritível aura de liberdade e alheamento em torno dela. Ela era livre por dentro, independente de forças externas, atravessava fronteiras nacionais tão tranquilamente como se estivesse virando as páginas de um livro. A volúpia daquela ordem de desprendimento tão inatingível para nós, aquela facilidade de movimento através do espaço me deu uma espécie de impulso criativo extraordinário. Depois obtivemos essa volúpia – e a perdemos tentando correr atrás do vento nos cabelos de Maria Schneider. Talvez tenhamos entendido aquilo tudo literalmente demais.

BG – Bem, você sabe que tudo isso teve início nos anos 1960, com a descoberta da liberdade de consumo.

SB – Não tem nada a ver com consumo!

BG – Tem tudo a ver. Quando há cabelos esvoaçantes, há consumo.

SB – Você acha que Maria Schneider está fazendo uma propaganda de xampu?

BG – Decerto é uma propaganda de xampu. Mas agora se evidenciou que o consumo é uma forma de produção. Agora, para que os cabelos esvoacem e para que a gente repare neles, é preciso ver todas as propagandas de xampu, escolher o xampu certo etc. etc. A partir dos anos 1960, a esfera do consumo, incluindo a disposição do tempo livre das pessoas, banhos nas fontes romanas…

SB – Isso está ligado ao tópico do ócio e do lazer, o venerado “lazer” ocidental.

BG – Exatamente, mas isso é consumo.

SB – Mas também um sonho de liberdade, de fuga do próprio determinismo econômico.

BG – Certo, mas esse sonho terminou. Estava ali como uma espécie de ideal prático nos anos 1960; houve até uma revolução então. Mas o sonho terminou porque surgiu um novo segmento de altos agentes empresariais, uma indústria do turismo, toda essa estética de consumo, propaganda etc. Então tudo se converteu numa forma de relaxamento ligada à atividade. Hoje, descansar, relaxar, é uma das mais atribuladas e complicadas formas de atividade. Na sociedade contemporânea, é o tipo de trabalho mais árduo. Por conseguinte, essa esfera também está integrada a certo espasmo industrial generalizado. E esse projeto – ver-se numa praia com os cabelos esvoaçando – hoje em dia requer investimentos muito pesados, inclusive investimentos financeiros.

SB – No fundo, você é um cínico. É mais cínico e, ao mesmo tempo, mais nostálgico do que eu. Você ainda acredita em alguma marcha do progresso pela qual determinadas formas sociais são substituídas por outras e na qual não se dá tudo para melhor. Você acredita num télos da destruição da liberdade. E você restringe a liberdade a algum espaço estético total. Dê-me um exemplo de quem dentre os seus heróis teria sido o mais livre.

BG – Entre os meus heróis? Não sei.

SB – Leni Riefenstahl? Eisenstein?

BG – Não eles, com certeza. Acho que houve ondas de liberdade – a vanguarda, por certo. Houve uma onda dessas no início do século xx. Talvez algumas pessoas nos anos 1960. Mas de modo geral sou um marxista e acredito que haja não uma mudança de estruturas econômicas, mas uma crescente economificação de todas as esferas da vida, e consequentemente uma crescente contextualização material dos ideais abstratos e das condições para a realização deles. E isso, de fato, é algo que está progredindo. Gostemos ou não, esse processo está em curso. E ele conflita com a nossa noção de liberdade, a nossa noção de subjetividade como uma categoria ontológica. Hoje em dia, começamos a nos exprimir por referência não ao sujeito, mas às condições, sejam elas materiais, econômicas, relacionadas à produção etc., sob as quais um projeto pode ser realizado.

SB – Posso lhe fazer uma pergunta sobre a vanguarda? Sei que você reviu suas ideias diversas vezes, mas uma das principais críticas à sua obra é a de que até certo ponto a sua concepção da vanguarda se resume a Malevich. Vejamos quem, na sua opinião, é mais livre: Malevich ou, digamos, Kruchenykh? Diferentemente de Malevich, Kruchenykh nunca sucumbiu a nenhum télos externo; seu único télos era o jogo: jogo constante, parábase, ironia, jogo sem fim, jogo sem télos. O que é mais livre do seu ponto de vista: o modelo do jogo ou o modelo da transcendência do determinismo histórico?

BG – Não estou falando sobre nenhum dos dois. Creio que na base da vanguarda, da vanguarda radical, havia a observação de que transferir qualquer objeto do espaço não artístico para o espaço marcadamente artístico o transforma em uma obra de arte. O Quadrado negro [de Malevich], os objetos de Duchamp e as obscenidades criadas por Kruchenykh foram recodificados no âmbito da arte sem qualquer investimento de mão de obra. Isso é criar arte para além de mão de obra. Aquilo parecia ser um rompimento absoluto com qualquer investimento material. Mas depois as pessoas compreenderam que, na verdade, aquilo significava explorar mão de obra, a mão de obra das massas trabalhadoras. Deixe-me explicar por quê. Essa transcendência, essa transferência para dentro do espaço da cultura, para o museu, só é possível uma vez que o museu tenha sido construído por trabalhadores, uma vez que ele tenha sido dotado de um código social, uma vez que sua entrada esteja vigiada pela polícia, uma vez que haja uma bilheteria. Em outras palavras, esse espaço social e existencial precisa primeiro ser burocraticamente e comercialmente assegurado mediante enormes investimentos. Só então o ato artístico de vanguarda pode ser executado. Isso se evidenciou já nos tempos de Stálin, que no entanto eu descrevo em outros termos. E, uma vez que se compreendeu isso, a vanguarda desapareceu, a liberdade da vanguarda desapareceu, na medida em que ficou patente que ela representava uma exploração da mão de obra daqueles que haviam construído o museu.

SB – Sim, mas isso foi depois de Duchamp. De início, ao colocar seu urinol no contexto da arte, ele aumentou o valor dele sem explorar mão de obra.

BG – Não, ele nem refletiu sobre isso. Quando ele expôs o urinol num museu, era óbvio que o museu fora construído por trabalhadores, que era vigiado, que havia uma instituição que lhe permitira fazer o que ele fez. Simplesmente ele teve um pressentimento parecido com aquele do faraó ao preocupar-se tão somente com que seu corpo fosse guardado numa pirâmide. O faraó não estava interessado em como a pirâmide fora construída. Quando alguém começa a pensar em obter espaço num museu, naquilo que o curador, o diretor ou alguma fundação acha a respeito, já não quer um ready-made ou quadrados pretos: quer ir lá e pendurar a si mesmo.

SB – Contudo, se você olhar para isso de um ponto de vista ainda mais marxista, é uma expropriação dos expropriadores. De onde esses museólogos recebem dinheiro? De pessoas muito ricas. Então é melhor que essa gente invista seu dinheiro num museu do que em alguma outra coisa. Os museus essencialmente expropriam os expropriadores; eles nos liberam ao investir em arte um capital que de outro modo seria utilizado de um jeito bem pior. Vejo certa função liberadora nisso. Lembra-se de como Komar e Melamid [5] lançaram um projeto com elefantes na Tailândia? Eles ensinaram os elefantes a pintar, “liberando-os” da labuta física e, ao mesmo tempo, ajudando um bocado os moradores de um povoado tailandês. O povoado estava passando por uma crise por causa do desenvolvimento da economia global, e se não me engano a atividade madeireira local ficou seriamente abalada: derrubar árvores para exportação (atividade na qual os elefantes eram utilizados) já não propiciava nenhum lucro. Komar e Melamid ensinaram arte aos elefantes (até onde sei, os elefantes se tornaram em sua maior parte seguidores de Jackson Pollock e optaram pelo expressionismo abstrato). Então, aquele povoado desolado se tornou um centro turístico com todos os aparatos de uma indústria turística. Eis um exemplo que mostra que a arte tem uma força liberadora caso o artista seja capaz de fazer uma reapropriação do espaço do capital.

BG – Isso depende do que você considera por labuta. Antes os elefantes perambulavam em paz; não estavam sequer trabalhando de verdade. Agora eles têm de ficar parados durante oito horas por dia e pintar alguma coisa.

SB – Mas os elefantes estavam sendo mortos! Antes eles ficavam perambulando à toa, morriam…

BG – Certo, isso era a vida normal. É isso o que é liberdade. Ao passo que sabemos com Foucault o que significa ser incumbido de ficar passando um pincel numa tela por oito horas a fio.

SB – Discordo. Acho que os elefantes foram transferidos de uma situação de natureza caótica para um patamar de liberdade mais elevado [risos], um patamar estético. Os elefantes tinham uma satisfação incrível com essa atividade. Você deve simpatizar com isso.

BG – Não. Na verdade isso é ideologia.

SB – Bem, em certo sentido eu me identifico sim com os elefantes.

BG – Eu também. Supõe-se que os autores tenham um prazer incrível com o ato de escrever. Na verdade, não é nem um pouco assim. Posso julgar pela minha própria experiência. Ficar sentado na frente de um computador é terrivelmente desconfortável: os olhos doem, as costas doem, os braços doem, tudo dói. Ficamos ali sentados por uma hora inteira feito uns malucos, mofando, sentindo-nos mal. Na verdade, isso é uma forma de existência desumana, não tem nada de bom nisso. É exploração. O mesmo vale para os elefantes. Por que eles deveriam estar fazendo aquilo?

SB – Espere aí, você não terminou. Ou você é um completo masoquista ou chega a um momento em que de repente a coisa começa a andar bem, a um certo êxtase…

BG – Não tem nenhum êxtase.

SB – Um prazer?

BG – Tampouco prazer.

[Pausa]

SB – Agora voltemos à liberdade e falemos sobre seus efeitos sobre a retórica da mídia contemporânea.

BG – Nessa situação, acho que toda a conversa sobre relações públicas deve ser vista da perspectiva da retórica da suspeita que domina a mídia e a sociedade contemporâneas. Levando isso em conta, essa conversa não pode ser levada a sério. Aqui eu concordo com o meu amigo Peter Sloterdijk, que fala da arena da mídia contemporânea como um espaço remanescente da arena da Roma Antiga. E essa situação de “gladiatura midiática”, do duelo midiatizado como um objeto de contemplação, interesse e admiração, é o que caracteriza o mundo contemporâneo da mídia.

SB – Tenho certa metassuspeita sobre a política da suspeita. Precisamos nos lançar atrás de cada tendência, correr atrás do Komsomol [6] com as calças arregaçadas, como escreveu Maiakovski? [7] Toda ordem de sociedade é pluralística internamente; podemos discernir fenômenos alternativos, laterais, que se opõem e resistem ao télos oficial. Por exemplo, estou interessada em uma noção que sei que não vai lhe agradar: a do liberalismo estético. Trata-se de um modelo de confrontação e contraponto não por oposição binária, mas mediante movimentos potenciais, mediante o desenvolvimento de esferas alternativas. Nosso papel como intelectuais consiste em escolher com quem “caminhar junto” e para onde (perdoe a expressão). [8] Poderia haver uma liberdade em relação à convenção sem marginalização cabal.

BG – Sou mesmo mais cético do que você disse, pois tenho – assim como você tem, por certo – alguma experiência na discussão de todas essas questões. Simplesmente sei que indivíduos malogrados que estão fora da convenção, sejam eles pintores ou escritores, na verdade querem ter mais sucesso e fazer parte dessa convenção.

SB – Mas não a qualquer custo.

BG – O que você quer dizer com isso? Eles querem. E valorizam nossos textos críticos somente se estes aumentarem as chances de sucesso deles próprios ao suscitar uma discussão sobre os textos que os torne mais interessantes para o público. Não creio que se possa pular fora desse processo. Mas geralmente não fico muito interessado na questão sobre o que fazer. Prefiro me abster de qualquer ação. Estou mais interessado em observar e descrever processos que vejo acontecer, sem pretender interferir neles.

SB – Você tem algum sentimento de responsabilidade? Estou interessada na obra de Hannah Arendt neste exato momento porque ela não opõe as noções de liberdade e de responsabilidade. É quando definimos determinadas fronteiras e lançamos algumas âncoras de responsabilidade que criamos um espaço de liberdade. Isso não é apenas uma limitação, pois uma vez que definamos esse espaço podemos atuar nele. A responsabilidade continua sendo um problema importante para mim, e é por isso que não quero reduzir a liberdade estética e a política uma à outra. Não quero me limitar a um plano abstrato ao falar sobre liberdade, mas fazer uma distinção entre o abstrato e o concreto, entre Liberdade (com L maiúsculo) e liberdades (no sentido de direitos políticos), preservar certa distinção entre o público e o privado, entre o estético e o político.

BG – Tenho sim um sentimento de responsabilidade, é claro. Até mesmo um sentimento altamente desenvolvido. Quando escrevo alguma coisa, penso no meu leitor – e em particular penso que os leitores contemporâneos não têm interesse algum por aquilo que escrevo. Porque hoje em dia as pessoas não querem ler, querem se expressar. A priori, portanto, não querem ler aquilo que escrevemos e discordam daquilo de saída. Mas a vida é transitória: surge uma nova geração e há a figura do futuro leitor, que vai ler esses textos simplesmente porque vai achá-los interessantes, porque vai estar interessado naquilo que aconteceu no nosso tempo. Por isso me sinto responsável em relação a ele, de forma que procuro expressar meus pensamentos tão precisamente quanto possível.

SB – Ou seja, você não quer mudar o mundo, nem que seja por via da percepção do seu leitor?

BG – O que significa “mudar o mundo”? Mudar o mundo significa que os meus leitores, quando tiverem de ler meus textos, vão extrair conclusões. Mas não se sabe que conclusões irão extrair. As pessoas extraem as conclusões mais inesperadas daquilo que leem. Veja os exemplos de autores tão consagrados como Marx ou Cristo.

SB – Sou adepta de algo como um juramento hipocrático, sabe? O mais importante é não prejudicar um leitor que já está mal. É isso o que quero dizer com sentir-se responsável.

BG – Mas o problema é que as pessoas podem fazer uso de qualquer coisa para se machucar. Dê a elas qualquer objeto e elas irão usá-lo para cometer suicídio ou matar alguém. Não há praticamente nenhum objeto que não possa ser usado para matar, inclusive um livro como objeto material, que você pode bater na cabeça de alguém. Você pode causar dano em quaisquer circunstâncias, de qualquer maneira, sob qualquer ponto de vista. Minha única responsabilidade como autor é expressar tão fielmente quanto possível aquilo que observo com meus próprios olhos. Que conclusões as pessoas vão extrair disso? Acho que cada uma irá extrair as conclusões peculiares à sua própria natureza.

SB – Mas que tipo de texto você propõe ao seu leitor? Aberto ou fechado? Isso lhe preocupa? Sua própria interpretação é a coisa mais importante para você?

BG – É muito difícil para mim dizer se eles vão perceber meu texto como algo aberto ou fechado. É difícil dizer como o meu texto será recebido, quais serão as conclusões dos leitores; por um lado, a natureza humana é extraordinariamente monótona, por outro, é extraordinariamente diversa. Todas as pessoas são aproximadamente as mesmas, mas ao mesmo tempo todas são diferentes. Assim, é difícil saber como elas nos percebem.

SB – Por falar em diversidade e monotonia, você acha que a concepção de liberdade difere de cultura para cultura? Como? Em outras palavras, há concepções de liberdade diferentes na Rússia, na Alemanha, nos Estados Unidos?

BG – Não creio que haja. Como autor, tenho um discernimento aguçado acerca da liberdade dos meus leitores. Definitivamente, não presumo que eu possa influenciá-los sob qualquer aspecto. Tenho a sensação de que eles são completamente livres em relação a mim. A percepção e as conclusões deles são absolutamente autônomas em relação àquilo que eu possa ter escrito. Tenho de fato uma concepção de liberdade bastante radical; para mim, se trata antes de tudo da liberdade dos meus ouvintes e leitores. Espero uma percepção absolutamente livre. Não tenho nenhum desejo de impor, influenciar ou interferir, já que não considero isso possível sob qualquer aspecto. Respeito ao máximo a liberdade dos ouvintes e leitores. Desse modo, concentro-me inteira e exclusivamente na minha própria liberdade ao expor aquilo que considero ser correto por mim mesmo – sem prestar nenhuma atenção aos ouvintes e leitores, que são absolutamente livres para extrair suas próprias conclusões daquilo. Estou convencido de que, independentemente da cidade, da aldeia, do país etc., estamos aproximadamente na mesma situação, que nesse sentido é justamente uma situação de liberdade.

SB – Eu faria uma distinção entre duas concepções. Por um lado, há a concepção supra-humana de uma liberdade que é quase independente das ações humanas. Para mim, isso também abrange as concepções de liberdade platônica e hegeliana, bem como a ideia do “mercado livre”. Por outro lado, há a concepção de liberdade existencial, em que o elemento humano não pode ser instrumentalizado dessa maneira, e um ser humano não é reduzido a um espírito da história, nem a uma mão invisível do mercado. Para mim, a liberdade está ligada ao homem, à sua sensação de sua própria mortalidade, de seus limites, sua responsabilidade, suas possibilidades. Liberdade é um conceito de dimensões humanas, não piramidais. A “liberdade do mercado” é, por um lado, uma pura metáfora, uma antropologização da economia, e, por outro, uma relativização das funções humanas. Hoje em dia, no embate entre o modelo de liberdade econômico e o político-existencial, a economia e seus modelos de liberdade, isto é, liberdade como um “fluxo econômico”, evidentemente têm a supremacia. No nosso tempo, infelizmente, os filósofos olham para a economia em busca de novas metáforas de liberdade. O que você acha disso?

BG – Sou muito cético. Isso está muitíssimo em moda mesmo, e vem não só da direita, isto é, do liberalismo tradicional, mas também vem se manifestando com bastante intensidade a partir da esquerda, comumente por via de uma interpretação muito peculiar de Deleuze, em que seu “corpo sem órgãos” praticamente coincide com o capital. De fato, a ideia de que o capital é absoluta liberdade pode ser encontrada nos primeiros escritos de Marx, nos quais ele afirma que o capital é uma força puramente negativa que destrói todos os grilhões, supera todas as fronteiras, destrói todas as subordinações. Creio que tanto o jovem Marx quanto os teóricos pós-deleuzianos superestimam demasiadamente a liberdade do capital. Se olharmos para o real funcionamento da economia, veremos que ela depende profundamente da burocracia, da lei, da regulação. Veremos que os processos econômicos são extremamente dependentes de decisões políticas, das diretrizes dos bancos centrais, das políticas estatais, das regras que regulam o funcionamento do mercado. Essas regras resultam de expressões da vontade política. Todos os projetos econômicos precisam obter permissão de governos ou de organismos internacionais. Em outras palavras, a atividade econômica não é livre: é a soma de projetos econômicos individuais que precisam ser permitidos e legitimados tanto quanto quaisquer outros.

SB – A certa altura, a atividade econômica implicou mobilidade social, libertou as pessoas das hierarquias da sociedade feudal, deu-lhes um novo status e, com isso, por certo, desempenhou um papel liberador.

BG – Isso é uma ilusão.

SB – Já no presente, a economia tem criado, em certo sentido, uma sociedade hierárquica dela própria, com corporações etc.

BG – Não só corporações. Sabemos que essa economia toda só começa a funcionar num ambiente altamente artificial, onde já existam sistemas legais, bancários etc., que por sua vez reproduzem esse ambiente artificial. Uma pequena mudança é suficiente para mudar tudo nesse ambiente. E as corporações contemporâneas são cada vez mais dependentes da política: precisam cumprir vários requisitos em todos os níveis – não só requisitos políticos, mas também sociais, ambientais e muitos outros. Para fazer qualquer coisa na sociedade contemporânea, elas precisam levar em conta uma porção de interesses diferentes.

SB – Em que esfera deveríamos procurar liberdade então?

BG – Ela não existe!

SB – Então sobre o que estamos falando? Um fantasma? Por mais que a liberdade esteja desaparecendo (algo de que não estou convencida), seu lugar mitológico e fantasmático permanece. Nós discutimos a esfera estética e a econômica, mas não falamos muito sobre política. Acho que você simplesmente excluiu a esfera política da sua reflexão sobre a liberdade.

BG – De fato, excluí a esfera política de saída, já que aí só podemos fazer aquilo que os eleitores, a burocracia etc. nos autorizaram a fazer. Simplesmente não há nenhuma liberdade aí.

SB – Seria correto dizer, portanto, que, na sua visão, o período histórico em que a liberdade se tornou um valor cultural (da Grécia Antiga em diante) chegou ao fim no nosso tempo?

BG – Acho que só podemos falar sobre liberdade situacional, contextual, isto é, sobre como vivenciamos algo ou sobre a condição de sermos capazes ou incapazes de fazer algo. Eu, por exemplo, vivencio a total liberdade dos leitores em relação a mim, a liberdade de interpretação deles, como um importante fator para a minha atividade; ou seja, entendo que não posso controlar meus leitores. Esse fenômeno é aquilo que concebo como liberdade. Eu me deparo com a liberdade na qualidade de um inimigo. Assim, posso dizer que de fato sentimos a liberdade dos outros, mas a questão é que eu não acho que sintamos a nossa própria liberdade.

SB – Então para você não importa se você trabalha na Rússia ou na Alemanha?

BG – É claro que não. Acho que só vivenciamos a liberdade como a liberdade de outrem. A questão não é que a liberdade das outras pessoas coloca limites à nossa liberdade. Não temos liberdade alguma; temos apenas nossos projetos, nossas carências, nossas necessidades. A liberdade das outras pessoas é aquilo que não nos permite realizar os nossos projetos; a liberdade é aquilo que torna a vida difícil para nós, já que ela sempre é a liberdade de outrem. Não é por acaso que a filosofia francesa contemporânea é a filosofia do Outro, não a filosofia da identidade ou da subjetividade própria.

SB – E no entanto você também pode se tornar esse Outro.

BG – Não, não. Isso foi apenas um sonho. Como disse Rimbaud: “Eu sou um outro”. Querer se tornar outrem, ou seja, se tornar livre, é um sonho romântico tal qual aqueles cabelos esvoaçando ao vento.

SB – Perdoe-me o impulso classificatório, mas nesse caso você se encaixa na corrente predominante do pós-modernismo russo. Na minha opinião, o pós-modernismo russo tem dado pouca atenção às ideias de descentralização do poder e de percepção do Outro que são tão caras ao pós-modernismo francês e ao pensamento ocidental contemporâneo em geral. O Outro permaneceu alheio e “outro” no sentido pré-pós-moderno da palavra. Noto isso em relação a você; a liberdade do Outro é um obstáculo, não uma fronteira da qual podemos de alguma forma nos beneficiar.

BG – É claro, sem dúvida alguma. É por isso que digo que liberdade é a liberdade dos meus leitores em relação àquilo que escrevo, e essa liberdade…

SB – Inspira você?

BG – Não, na realidade não me inspira. De um modo geral, acho que o homem não é feito para o trabalho. Mas essa liberdade é a condição sem a qual meu texto não poderia ter surgido sob a forma em que surgiu. Nesse sentido, a liberdade do Outro é uma premissa para aquilo que a gente mesmo faz.

SB – Lembre-se que na Rússia essa noção praticamente não existe, visto que a lei é muito fraca e nenhuma liberdade é protegida. Eu pessoalmente acredito que a não liberdade das outras pessoas pode ser até pior para nós do que a liberdade delas.

BG – Sim, pode muito bem ser pior. Não sei se é. Não conheço a literatura russa contemporânea tão bem quanto você. Mas tenho sim uma opinião instintiva. Não sei como explicar isto, mas na Rússia não parece haver um discernimento radical da liberdade dos outros tal como existe no Ocidente, manifestando-se na produção literária e artística. Ao contrário, ainda há uma suposição de que se pode influenciar pessoas, convencê-las de algo, explicar algo a elas. Também há certa suposição de uma comunidade hermenêutica recôndita, a ideia de que o Outro pensa mais ou menos o mesmo que você – e se não pensa assim está apenas fingindo, exibindo-se. Não há nenhuma noção de que o Outro é na verdade absolutamente livre em relação a todas as premissas na base dos nossos escritos, de que ele é absolutamente livre para interpretar nossos textos tal como bem entenda. Eu tenho sim essa noção, e certamente me pauto por ela. Tenho a impressão de que essa premissa torna os textos ocidentais mais radicais, já que eles são menos calculados para suscitar a simpatia, a compreensão ou a anuência dos leitores. Eles se elevam e pairam por si sós feito pipas, por assim dizer; não precisam de uma fonte de energia adicional.

SB – No entanto, há uma definição de liberdade diferente. Segundo Hannah Arendt, liberdade é uma possibilidade de um novo começo, “um milagre de infinita imprevisibilidade”, que só está ao alcance dos seres humanos nesta vida, não em qualquer outra.

BG – Há uma imprevisibilidade aí, mas uma imprevisibilidade que foi ela própria prevista. Essencialmente, não esperamos nada novo. Imprevisibilidade é quando a gente espera alguma coisa e então algo imprevisível acontece. Já não espero coisa alguma do leitor, então qualquer reação é válida, sendo previsível e imprevisível ao mesmo tempo. Não me surpreendo com nada nem confirmo nada. Acho que isso é uma espécie de indiferença psicológica, que no entanto não implica a ausência de um sentimento de responsabilidade. A responsabilidade pelos meus textos permanece, mas vai sendo redefinida, por assim dizer.

SB – Nossa conversa também está ficando previsível. Você continua falando sobre a impossibilidade de liberdade e só o que faço é discordar e exprimir uma aspiração romântica a novas possibilidades e surpresas. Elas podem brotar…

BG – Do clima. Por exemplo, desse horrível nevoeiro em Moscou agorinha mesmo.

SB – Não só do clima. Pode haver surpresa simplesmente ao se conversar com uma pessoa inteligente de vez em quando. A literatura e a arte também nos propiciam viver muitas vidas. E eu gostaria de abrir essas possibilidades, por mais restritas que sejam, a outras pessoas. Num sentido estético e existencial, liberdade não é a ausência de fronteiras; é uma situação delimitada, mas flexível. Ela nos permite jogar com as fronteiras do conhecimento. No aspecto político, a liberdade jamais foi ligada a uma incondicional permissividade, e sim às fronteiras da pólis, à possibilidade de desempenhar um papel no palco da vida política, aos direitos e à justiça social. Para mim, a ausência de fronteiras não é liberdade, mas temor e previsibilidade. Desse modo, acho que os gestos radicais são previsíveis em seu radicalismo. O gesto radical sabe como irá acabar e não pressupõe a coautoria de ninguém. Mas é somente por meio da coautoria na acepção mais ampla da palavra, por meio da coautoria com o mundo, que podemos vivenciar a surpresa e o prazer.

BG – A questão não é se a pessoa é radical ou não. Acho que vivemos sob as condições da soberania dos leitores, e isso gera uma situação em que não podemos convencer o leitor de coisa alguma, por uma questão de princípio.

SB – Isso só é válido para o Ocidente.

BG – Acho que é válido para qualquer lugar. Eu diria que tudo aquilo que fazemos é uma espécie de autodocumentação: documentamos o nosso projeto de vida. De que maneira as pessoas percebem essa autodocumentação, de que maneira a interpretam, isso é problema delas. Vejo a minha atividade como uma documentação da minha existência.

SB – E qual é o propósito da sua autodocumentação? Transcendência? A arte da memória?

BG – Há um duplo propósito. Em primeiro lugar, ela é uma forma de existência socialmente aceita. A sociedade contemporânea é construída de tal modo que nos permite documentar a nós mesmos e até nos paga por isso. Então ela é uma determinada forma de sobrevivência na sociedade. Além disso, ela dá ensejo a um sentimento de responsabilidade intelectual, a um desejo de fazermos bem o nosso trabalho, ainda que não sejamos pagos por esse desejo. A documentação é remunerada, mas não recebemos pagamento extra por fazer bem aquilo. Assim, é um desejo que tem uma motivação exclusivamente moral, e sem dúvida alguma eu tenho esse desejo. Procuro fazer bem aquilo que faço, sempre que eu possa, sempre que eu tenha a ocasião. Isso é tudo o que posso dizer. O que não sei dizer é a que isso tudo leva.

SB – Comecei por comparar a liberdade com o ar: ela é invisível, mas não podemos viver sem ela. Estive andando por Moscou estes dias e não conseguia respirar por causa do nevoeiro onipresente. Digo isso literalmente: eu ficava sufocada. Isso é um nevoeiro, não uma metáfora daquilo que está acontecendo ao meu redor. Mas foi aqui, em Moscou, que compreendi o quanto precisamos disso que é invisível e muitas vezes não conseguimos sequer definir adequadamente.

BG – Bem, acabei de vir da Áustria, onde tudo está inundado e onde tampouco se pode respirar. A umidade era tanta que meus ossos doíam. Acho que a diferença entre nós é que você quer preservar uma percepção hedonística da vida, você quer desfrutar a vida. No semestre passado, discuti com meus alunos uma reflexão muito interessante que Kant faz sobre o fato de haver quem pense que se deve seguir vivendo porque a vida é prazerosa. Kant observa que essa opinião é patológica. A gente tem de viver para cumprir nosso dever moral, pois se não vivermos não poderemos cumprir esse dever. O dever moral exige que o sujeito que tenta cumprir esse dever fique vivo. Então Kant escreve que, de um modo geral, a vida é altamente desagradável, de maneira que, se o homem fosse guiado somente por um patológico desejo de viver, ele muito em breve cometeria o suicídio. Mas como temos de cumprir nosso dever, como temos de trabalhar, também precisamos viver, infelizmente. Da minha parte, subscrevo esse ponto de vista kantiano.

SB – Na medida em que eu seja uma hedonista, meu hedonismo é místico. Acredito que o caminho do conhecimento é um caminho de surpresas e imprevisibilidade; para segui-lo, precisamos nos manter abertos para o mundo. Pode ser que nem sempre saibamos para onde esse caminho nos leva, mas mesmo assim temos de segui-lo.

BG – Para mim, tudo fica claro muito rápido, mas é preciso seguir arrastando a existência.

SB – Há uma sensualidade de vida de caráter místico.

BG – Permita-me contar-lhe uma anedota extraída da minha vida. Quando eu estava morando em Piter, [9] certa vez me vi num arrabalde ermo sem saber como encontrar o endereço que eu estava procurando. Então vi alguém largado à beira da estrada. Para saber se fazia sentido pedir-lhe orientação, perguntei a ele: “Você mora aqui?”. Com isso ele se levantou, sacudiu a poeira de si, olhou-me atentamente e disse: “Não, eu não moro aqui, eu vegeto aqui”. [10] Acho que esta é uma descrição bastante precisa da situação contemporânea.

SB – Isso quer dizer que você aspira a algum tipo de liberdade fora da vida, ao passo que eu quero obter liberdade em meio à vida.

BG – Fora da vida, por certo. A única liberdade que há é libertar-se da vida.

SB – Para mim, ao contrário, a única liberdade é liberdade dentro da vida. Simplesmente não há nenhuma outra liberdade, já que em qualquer outro espaço essa experiência simplesmente se torna obsoleta.

BG – Nada disso. Por exemplo, se você escreve, trabalha para um tempo e um espaço fora da vida.

SB – Pois bem… Texto como a única forma de imortalidade que nos resta?

BG – Você emigra da vida, trabalha para um espaço fora da vida. Por conseguinte, a liberdade que você exerce é uma liberdade transcendental em relação à vida; ela é antivital, é adversa à vida. E por isso a única liberdade decente é libertar-se da vida. Viver é aprender a ser livre da vida.

SB – Acho que é hora de sairmos do exterior transcendental e migrarmos de volta à vida. De outro modo, podemos perder nossa única chance de liberdade, que só pode estar aqui e agora. Mas por certo a liberdade implica um sonho (não transcendência, apenas um sonho) sobre a possibilidade de se viver diversas vidas, uma esperança de novos começos e de imortalidade que conservamos até a morte. Cada novo texto que nos conduz a êxtases (sei que você gostaria de reprimir o êxtase, mas ele vai voltar de qualquer jeito) é um novo começo. Após a morte, tudo isso fica por conta dos nossos leitores.

BG – Que se danem esses leitores!

* Tradução de Alexandre Morales

NOTAS

[1] O tradutor da versão em inglês destaca em nota de rodapé o fato de que em russo não há diferença entre liberty e freedom. Observa ainda que o diálogo não aborda as diferentes tradições de uso desses dois termos na língua inglesa, de modo que eles são empregados de maneira permutável entre si. No caso da presente tradução, ocorre algo relativamente correspondente na alternância dos termos “liberdade” e “libertação”, empregados de acordo com o sentido que nos pareceu pertinente ou cabível em cada ocorrência. [N. do T.]

[2] “Obra de arte total” [em alemão]. Na visão de Groys, um projeto estético abrangente que é o exato equivalente do regime totalitário. Um dos livros mais conhecidos de Groys tem o título Gesamtkunstwerk Stalin [A obra de arte total do stalinismo, 1992]. [Nota do editor da versão em inglês.]

[3] Ilya Kabakov (1933), artista conceitual ucraniano radicado em Nova York desde meados dos anos 1980. [N. do T.]

[4] Termo burocrático soviético empregado para designar a comunalização compulsória de um apartamento. [Nota do tradutor da versão em inglês.]

[5] Vitaly Komar (1943) e Alexander Melamid (1945) são artistas russos radicados nos Estados Unidos. [N. do T.]

[6] Organização juvenil do Partido Comunista soviético. [N. do T.]

[7] Na verdade, a citação é do poema de Serguei Iessiênin “O russo que está ficando pra trás” (1924): “Amigos! Amigos!/ Que discórdia há em nosso país,/ Que tristeza na animada comoção!/ Deve ser por isso que eu também quero/ Correr atrás do Komsomol/ Com as calças arregaçadas”. [Nota do tradutor da versão em inglês (com tradução dos versos a partir da versão em inglês)]

[8] Referência ao “Caminhando juntos”, movimento jovem de apoio ao ex-presidente Putin criado em 2000 sob os auspícios do Kremlin. [Nota do tradutor da versão em inglês.]

[9] Um persistente cognome coloquial para São Petersburgo/Petrogrado/Leningrado. [Nota do editor da versão em inglês.]

[10] A tradução enfraquece o efeito da frase ao reduzir o verbo to live à acepção estrita de “morar” em detrimento da acepção mais ampla de “viver” em contraposição a “vegetar”. [N. do T]

* Crédito da imagem que ilustra este texto na home: Washington, D.C., 1923. “Opening of Potomac bathing beach.” Everyone say “yaaaay!” National Photo Company Collection glass negative.

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