Um homem convida o amigo psiquiatra para almoçar e começa a falar sobre um possível problema mental; por várias vezes, conhecidos disseram tê-lo avistado em algum canto da cidade, mas ele não se lembra de ter estado nestes lugares. Na verdade, ele tem certeza absoluta de que, em tais momentos, estava em outro local, fazendo outra coisa. O problema não seria tão grave se, aos poucos, o tal sósia não começasse a aparecer também no clube que frequenta e a interagir com seus amigos, que são incapazes de notar qualquer diferença em sua aparência ou comportamento. Mais grave ainda, o sósia começa a aparecer em sua casa e, aparentemente, possui a sua própria chave. Perturbado, ele manda trocar a fechadura e resolve faltar no serviço, mas ninguém dá conta de sua ausência, pois o homem misterioso apareceu em seu lugar e executou suas tarefas da mesma forma que ele próprio teria feito. No mesmo dia, ele decide se distrair, vai ao cinema e, ao chegar tarde da noite em casa, encontra a louça suja do jantar que seu “outro eu” comera. Ele pergunta ao psiquiatra se é possível estar fisicamente em um lugar e mentalmente em outro, completamente diferente, mas com tanto detalhe e realismo que esse lugar imaginário lhe pareça o verdadeiro. Mas ele logo se lembra de ter assistido ao filme e de ter se certificado, no dia seguinte, de que era aquele mesmo que estavam exibindo, e que não poderia ter sido sua imaginação. Confuso, ele descreve a sensação de estar sendo cercado por esse outro homem, tão idêntico a ele que ninguém parece perceber se tratar de um impostor e que, pouco a pouco, vai tomando a sua vida para si, até que ele mesmo desapareça por completo, expulso de sua própria vida. Este é o enredo de “The Case of Mr. Pelham”, um dos melhores episódios da série de televisão Alfred Hitchcock Presents, exibida na década de 1950 e 1960.
Com dez temporadas, pouco mais de duzentos e sessenta episódios, e convidados ilustres como Vincent Price, Christopher Lee, Peter Lorre, Steve McQueen, Bette Davis, entre muitos outros (inclusive a recorrente Patricia Hitchcock, filha de Alfred Hitchcock), trata-se de um programa televisivo de qualidade rara, baseado principalmente em atuações fortes e roteiros excepcionais (dois dos melhores episódios de toda a série, “Man From the South” e “Lamb to the Slaughter”, são adaptações do excelente livro de contos de Roald Dahl, “Tales of the Unexpected”; sem falar na contribuição de sete episódios de Ray Bradbury e de três episódios de Cornell Woolrich, autor do conto que deu origem à obra-prima “Janela Indiscreta”) – e isso tudo muito antes da HBO aparecer com The Sopranos, The Wire, Mad Men, etc., séries de qualidade verdadeiramente cinematográficas. Hitchcock nos mostra que não é de hoje que as fronteiras entre o cinema e a televisão vêm se estreitando, ao ponto de quase perdermos de vista a divisão que os separa. Na série, é claro, os episódios são mais curtos, possuem uma duração de mais ou menos vinte e cinco minutos (em 1962, o programa seria rebatizado para The Alfred Hitchcock hour e os episódios passariam a ter uma hora cada), as situações são mais simples, não há tanta experimentação técnica como, por exemplo, as sequências feitas em animação de Um corpo que cai, mas o impacto das tramas não deixa de ser o mesmo de alguns dos melhores exemplos de sua cinematografia.
Diferentemente das produções da HBO, os episódios não são sequenciais, mas cada um apresenta um enredo diferente, com personagens diferentes, o que faz com que não haja necessidade de assistir as temporadas ou os episódios em ordem, tornando a experiência toda um pouco menos penosa (mesmo com toda a qualidade de The Sopranos, talvez a melhor série de televisão já feita, há quem se sinta intimidado com as seis temporadas do programa, sabendo que precisará assistir todos os episódios em ordem para acompanhar o desenrolar da história até sua conclusão, isso sem falar na imersão profunda nas vidas nem sempre agradáveis dos personagens). Com dezessete episódios dirigidos por ele mesmo, Hitchcock oferece um entretenimento mais leve, mas nem por isso mais bobo ou feito com menos cuidado.
Poucos são os autores que conseguiram estabelecer, com ou sem o auxílio de outras mídias além da própria, um universo tão reconhecível em nosso imaginário. Hitchcock, na televisão, reforça os mesmos elementos de seus filmes: loiras perigosas, homens usando ternos, possíveis vítimas de conspirações elaboradas ou da confusão de suas próprias mentes, de ideias fixas, do sobrenatural, da estricnina, do arsênico, da pólvora, da tentativa de executar o crime perfeito, do detalhe esquecido… Além disso, há um senso de humor delicioso como, por exemplo, no episódio em que um grupo de velhinhas desocupadas decide cometer uma série de assassinatos para conseguir chamar a atenção do vizinho bonitão que, por acaso, é detetive da polícia. O mais mórbido na situação é que elas matam entre elas e, assim, o grupo que inicialmente tinha cinco velhinhas vai diminuindo, tudo na esperança de receber mais uma visita do detetive. Há também, como não poderia faltar, algo de completamente bizarro, como no episódio “The Glass Eye”, em que uma mulher solitária se apaixona por um ventríloquo, mas acaba por descobrir que o ventríloquo é, na verdade, o boneco.
Hitchcock conseguiu estabelecer tal universo da mesma forma que as séries da HBO conquistaram público pelo mundo, lidando com questões universais, que poderiam se passar em qualquer país, como o descontentamento com o trabalho, o casamento, com a solidão e a monotonia da rotina diária – todos motivos válidos que nos fazem justamente buscar por entretenimento no cinema, na tevê ou, no caso da maioria de seus personagens, em problemas com a lei. E, como The Sopranos, The Wire e Mad Men, Hitchcock o faz com qualidade, com complexidade, sem nunca tratar o espectador como débil mental (coisa frequente nas produções menos cuidadosas). O diretor disse, uma vez, que os filmes não deveriam ser como fatias da realidade, mas como fatias de bolo. Mas não se trata de qualquer bolo porcaria e sim da mais fina e deliciosa sobremesa gourmet.
* Na imagem que ilustra esse post: o cineasta Alfred Hitchcock.