Vince Gilligan, criador da série

Vince Gilligan, criador da série

Breaking Bad, dez anos

Televisão

30.01.18

(Se por um acaso você ainda não assistiu Breaking Bad até o fim, pare agora mesmo de ler este texto. Ou prossiga, mas o aviso foi dado).

Há um monte de tragédia grega em Breaking Bad. Em nome de proteger a família, Walter White, um pacato professor de química, a destrói, assim como faz com a vida de um jovem ex-aluno, o malandro Jesse. O rastro de desgraças inclui sua mulher, Skyler, pobre e investigada pela polícia, o filho, Walt Jr, traumatizado e órfão, a cunhada, Marie, viúva e o cunhado, o bonachão Hank, assassinado. Como um Deus caído e alquebrado, Walter olha no final para uma foto antiga em sua antiga casa vazia, revendo os fantasmas do passado e seu legado terrível.

Dez anos mais tarde – o primeiro episódio foi ao ar no canal americano AMC em 20 de janeiro de 2008 –, este conto shakespeariano moderno sobre a transformação de um homem comum em impiedoso chefão do crime já estaria datado se fosse uma série qualquer, todavia Breaking Bad permanece atual. Foi uma das séries mais inovadoras da história da TV, cada vez mais influente nas produções contemporâneas.

Mas por quê?

Para começar vamos situá-la no, hm, universo das séries. Livros como Homens difíceis, de Brett Martin, assim como um número infinito de críticos, produtores e fãs, afirmam que vivemos uma era de ouro na TV – o que incluiu também plataformas de streaming  como Netflix, Hulu, Amazon etc. The Sopranos (1999-2003) foi a primeira a elevar o nível das produções da TV americana no final dos anos 1990, abrindo caminho para outras séries de grande prestígio, como The Wire (2002-2008) e Mad Men (2007-2015).

Breaking Bad, exibida entre 2008 e 2013, fecha o grupo, e se tornou a mais icônica. Uma explicação é a presença de Brian Cranston, ganhador por seis vezes seguidas do prêmio Emmy de melhor ator, no papel principal. Até aí, nada demais. James Gandolfini (Tony Soprano, de The Sopranos), Dominic West (Jimmy McNulty em The Wire) e  Jon Hamm (o Don Draper de Mad Men) também tiveram atuações antológicas. Mas não foram Walter White.

Não existe na história da televisão outro personagem submetido a uma  transformação tão completa. Como diz o próprio Brian Cranston, a TV sempre se baseou e ainda se baseia em personagens confiáveis e previsíveis, que de uma forma ou de outra todos conhecem e sabem como vão se comportar, mesmo nas mudanças. Walter White quebrou essa regra. Nada do que ele diz ou faz jamais é digno de confiança.

Em comparação com um chefão da máfia, um policial obcecado e meio malandro e um figurão do mundo da publicidade, White é um sujeito comum, um pacífico professor do ensino médio, meio banana, que cumpre jornada dupla em um lava-jato enquanto a mulher grávida tenta ser escritora. Vamos logo sabendo mais sobre ele: é um químico brilhante cuja carreira fracassou, mas anos antes foi sócio de uma empresa farmacêutica, Gray Matter, vendendo sua parte por 5 mil dólares após se envolver em um triângulo amoroso com os ex-sócios. Hoje a empresa vale bilhões.

Aos cinquenta anos, ali está ele comendo bacon no café da manhã do dia do aniversário, um bebê a caminho, outro filho que precisa de cuidados, quando descobre ter câncer de pulmão. Para não deixar a família desamparada, decide usar as habilidades de químico e começa a produzir metanfetamina com Jesse Pinkman (Aaron Paul, outra atuação magnífica), um ex-aluno que se revelou bandidinho.

Já era uma trama acima da média, e no começo, conta Vince Gilligan, o criador de Breaking Bad, era apenas isso: Breaking Bad giraria em torno dos problemas de Walter White para ficar com o dinheiro das drogas, já que por um motivo ou outro sempre o perderia. Mas depois de apenas quatro capítulos o esquema começou a ficar repetitivo. Então um roteirista teve a ideia: “E se  Walter começasse a gostar de ser criminoso e fosse adiante, não importa quanto dinheiro ganhasse?”

A transformação aparece logo no quinto episódio. Walter recebe a visita de Elliot e Gretchen, os ex-sócios que se tornaram bilionários. Elliot tem uma oferta de emprego para Walter, com direito a um plano de saúde que cobre o tratamento do câncer. Ele pondera, mas em certo momento a ex-namorada Gretchen diz que deve aceitar. Com o orgulho ferido, Walter recusa a oferta. Prefere ser um criminoso. É quando ele se revela pela primeira vez e Breaking Bad encontra a razão de ser.

Saber se Walter White é um homem bom que se tornou mau ou se, pelo contrário, o poder apenas revelou quem ele sempre foi, é o dilema básico da série. Além dessa premissa única, a capacidade de criar suspense, às vezes ao longo de vários episódios, a sutileza moral, as mudanças gestadas em ritmo lento, os cortes de câmera, elementos visuais como a obsessão de Marie, cunhada de White, pela cor roxa e as roupas amarelas usadas por Walter e Jesse Pinkman, e a trilha sonora, impecável, são elementos que ajudaram a redefinir até onde pode ir uma série de TV. Outro trunfo é o trabalho excepcional de diretores de fotografia como Michael Slovis.

E há o elenco. Não só Aaron Paul, mas Anna Gunn (Skyler), Betsy Brandt (Marie), Dean Norris (Hank) e Giancarlo Esposito (Gus Fring), entre outros, cada um com uma atuação premiada. Breaking Bad tem, por último, algo notável: não há pontas soltas. As subtramas existem, mas, ao contrário de muitas séries, o todo é maior do que as partes. Do início ao fim, é a história da transformação de Walter White.

Talvez daqui a dez anos o prestígio não seja mais o mesmo. Uma mudança visível em tempos recentes é que as séries pagam cada vez menos tributo a estes “homens difíceis”. Breaking Bad, assim como The Sopranos, The Wire e Mad Men, também tem a ver com a masculinidade em crise respondendo da pior maneira ao se sentir ameaçada. E se na época já era um incômodo o tratamento de certos grupos, hoje o cidadão Walter White, de Albuquerque, Novo México, classe média baixa, com 50 anos, nenhuma perspectiva e muita raiva do mundo, é o eleitor típico de Donald Trump.

Por falar em Trump, uma piada: dizem que ele é fã da série. Afinal, ela fala de outro americano branco que, em troca do poder, se une a nazistas para se livrar de imigrantes mexicanos.

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