A serrote 21 adianta quinze páginas duplas do livro Aqui, de Richard McGuire, que será lançado pela Companhia das Letras no ano que vem. O projeto ambicioso, que abrange não ficção, quadrinhos, memórias e até janelas do computador, foi considerado por Chris Ware como “a graphic novel que mudou tudo”, por explorar vários enredos que se desenrolam simultaneamente. As tramas interconectadas se sobrepõem e vão desde a vida de uma tribo indígena, passando detidamente pelo dia a dia de uma família americana entre as décadas de 1950 e 1980, até chegar a um futuro bem distante, nos anos 22.000. O ponto de vista, ao longo do livro, é sempre o mesmo: o canto de uma casa. Em entrevista ao Blog do IMS, McGuire diz que escolheu essa perspectiva específica porque “a casa em si vai e volta na história”, e ele queria que a “história fosse maior que a casa, maior que a cidade”.
Em relação ao tempo, “Aqui” vai pra frente e pra trás, em passos pequenos (poucos anos) ou enormes (centenas, milhares de anos). Entre os principais assuntos do livro, estão as ideias de impermanência e simultaneidade (“enquanto isso…”). Você poderia explicar como organizou a estrutura não linear da história, baseada nas memórias e nas projeções?
Por cerca de um ano, fiz pesquisas na área onde cresci, que não fica muito longe de Manhattan, mais ou menos 45 minutos de carro na costa de Nova Jersey. Foi divertido pesquisar sobre fatos do passado remoto do terreno, a atividade glacial, o tipo de vida que já existiu ali. O primeiro esqueleto completo de dinossauro foi encontrado não muito longe daquele local. Há evidências de que pessoas moraram lá cerca de onze mil anos atrás. Além disso, tentei imaginar como seria lá no futuro. Consultei um cientista do clima sobre as previsões de elevação das marés. Fiz uma linha do tempo num longo rolo de papel que preenchia todo o meu ateliê. Eu me atinha aos fatos que planejava usar. Sabia que queria esse olhar muito distante e queria também o olhar de perto, os fatos pessoais. Passei por muitas fotos de família, procurando por momentos casuais, pequenos eventos, como uma mão encostando um ombro, ou um abraço, pequenas interações humanas. Enquanto eu selecionava as imagens, estava simultaneamente escrevendo o diálogo num caderno, e muito daquilo partiu de conversas entreouvidas, ou lembranças de conversas. O tom geral que eu queria era um tipo de conversa do “dia a dia”, os momentos da vida que passam batido. Queria que o texto fosse forte o suficiente para se sustentar sozinho, sem as imagens. Comecei a ouvir aquilo como “uma voz”, mesmo que aquelas falas fossem de muitas pessoas, e acho que [o livro] pode ser lido como um poema. Sempre fiz muitas listas, de coisas, assuntos ou emoções que nós compartilhamos. Às vezes as listas eram engraçadas, como “insultos ao longo do tempo”. Em última análise, tudo foi costurado instintivamente, e comecei a ver conexões entre essas coisas. Comparo a estrutura da colagem com a música. Tem “musicalidade” nos ecos das imagens e nos sons do texto, padrões que começam a se desenvolver, e algumas conexões que apareceram me surpreenderam. Depois de certo tempo, elas passaram a ter vida própria.
“Aqui” é considerada uma graphic novel, mas é muito particular. Mistura ficção, memória, objeto de arte, colagem, quadrinhos, filme e até as múltiplas janelas abertas no computador. Como você descreveria esse formato, já que esse modo de contar uma história não é nada tradicional, com tantos enredos se desenrolando ao mesmo tempo?
Eu vejo mais como um “livro de artista” disfarçado de “graphic novel”. Acho que antes de qualquer coisa sou um artista, não um cartunista. Cartunistas são muito puros na devoção ao seu formato, e eu gosto de experimentar formatos diferentes. A força desse formato específico é a possibilidade de mostrar a simultaneidade, mas cada formato tem seus pontos fortes. O “olhar” do meu trabalho muda de projeto em projeto. Esse livro pode parecer “não tradicional” em sua abordagem, mas acho que ele é muito claro e compreensível. Quero que meu trabalho seja divertido e convidativo para o leitor. Acho que nesse caso a estrutura não linear com diferentes janelas de informação é uma coisa com a qual todos nós estamos confortáveis hoje em dia, com as telas de computador. Além disso, acho que essa maneira não linear de contar uma história pode ser na verdade mais próxima do modo como todos nós pensamos. Estamos todos pulando de um lado para o outro no tempo. Passamos nossos dias projetando o futuro, com planos para fazer, ou lembrando o que deveríamos ter falado ou feito. Um rosto na rua pode fazer com que você se lembre de alguém, uma música pode transportar você de volta no tempo, um cheiro pode ativar uma lembrança da sua infância. Raramente estamos no momento, a não ser talvez quando o telefone toca ou quando a chaleira apita.
A história se desenvolve a partir da mesma perspectiva, o canto da casa de uma família. Você poderia falar um pouco sobre o processo de criação do livro, especialmente quando você pesquisou sobre aspectos históricos daquele terreno? Por que você escolheu aquele ponto de vista específico?
Escolhi aquele canto originalmente porque pensei na linha cortando o centro como uma linha divisória, e achei que a história iria se desenrolar para frente de um lado da linha, e para trás do outro. Isso foi bem no começo da ideia, em 1988. Um amigo veio me visitar e me contou sobre o novo computador dele e o programa de “janelas”, que era relativamente novo naquela época. Esse foi o gatilho para a ideia de usar múltiplos planos de tempo. Escrevi uma história curta, de seis páginas, e foi a primeira coisa que publiquei, incluída na revista Raw, de Art Spiegelman. Anos depois, achei que eu deveria ir mais fundo e expandir aquilo para virar um livro. Em teoria, a ideia poderia se expandir ao infinito. O cômodo na primeira versão era um espaço mais genérico, e a história era mais um exercício formal. Quando decidi que usaria a casa onde cresci como locação, virou uma história mais pessoal, centrada na minha família, que explode a partir daí. Bem do outro lado da rua, em frente à nossa casa, tinha uma construção histórica. Quando cresci, ouvi dizer que Benjamin Franklin tinha morado lá, mas na minha pesquisa descobri que na verdade era seu filho. Li a correspondência entre os dois, e basicamente eles estavam discutindo sobre a futura revolução, em lados opostos, pois seu filho era leal ao rei da Inglaterra. Benjamin Franklin precisava cruzar minha sala de estar para visitar seu filho e tentar fazer com que ele mudasse de ideia. Ele tentava convencê-lo de que estava no lado errado da história. Aquela seria a última vez que eles se veriam, ele eventualmente foi detido e preso. Foi incrível descobrir isso, é um microcosmo das origens do país. Era tão incrível que fiquei com medo de que aquilo dominasse as outras histórias, eu precisava baixar o tom. No livro, também há uma cena em que minha mãe recebe um grupo de antropologistas que perguntam se ela deixaria que escavassem o jardim, isso realmente aconteceu. Eles estavam convencidos de que ali possivelmente teria sido um importante cemitério dos Lenape, tribo de povos nativos dos que viveu lá. Ela não quis. Nunca mais olhei para o meu jardim do mesmo jeito.
Num plano pessoal, seus pais viveram naquela casa por cinquenta anos. Quando você vendeu a casa, depois que eles morreram, o processo todo – voltar para onde você cresceu, o luto, olhar as suas fotos de infância e, depois, criar um livro em que a casa é a protagonista – foi muito catártico?
Foi muito catártico passar um tempo examinando a vida que se desenvolveu ali. Tantas memórias voltaram enquanto embalávamos as coisas na casa, meus pais guardavam tudo! Ao analisar as fotos, pude olhar para eles como indivíduos. Pude vê-los crescer, vi-os posando com outros namorados antes que eles eventualmente se conhecessem, casassem e tivessem filhos. Meu pai tirava fotos da gente todo ano na mesma locação. Acho que essa série também foi uma semente importante para o projeto, era uma interseção entre tempo e espaço! Incorporei algumas delas na sequência do livro. A casa em si vai e volta na história, eu queria que a história fosse maior que a casa, maior que a cidade. O mundo em si é visto sendo formado em um ponto, e o fim do mundo é mencionado na TV num documentário científico, quando o sol provavelmente vai engolir a Terra. A ideia de que tudo é impermanente, de que as nossas vidas são todas muito curtas e de que é importante aproveitar o momento – o livro é, em última instância, sobre isso.