O ano de 2015 encerrou-se, para os cinéfilos, com dois sinais contraditórios. Por um lado, o fechamento da 2001, a maior locadora paulistana de DVDs e Blu-Rays de filmes autorais, “de arte”, independentes, alternativos ou como se queira chamar tudo aquilo que escapa da hegemonia esmagadora do cinemão descartável. Má notícia que foi acompanhada, ao que parece, pelo fechamento de locadoras similares em metrópoles como Rio de Janeiro e Recife.
Ao mesmo tempo, porém, chegam ao mercado de DVDs algumas preciosidades, a mostrar que o formato pode cumprir hoje, nas vendas diretas, pelo menos uma parte do papel dos antigos cineclubes no que se refere à formação de repertório e enriquecimento da cultura cinematográfica.
Cito apenas duas dessas alentadoras novidades: Nostalgia da luz, o soberbo documentário de Patricio Guzmán, em lançamento do Instituto Moreira Salles, e duas caixas com filmes de Orson Welles, lançadas pela Versátil. Sobre o primeiro, ninguém escreveu melhor do que José Carlos Avellar, aqui mesmo neste blog. Falemos então de Orson Welles.
Desmesurado Welles
Das duas caixas lançadas agora, uma reúne os três notáveis longas-metragens realizados pelo diretor a partir de peças de Shakespeare: Macbeth (1948), Othello (1952) e Falstaff (1965). Na outra, clássicos como Soberba (1942), A dama de Shanghai (1948) e O processo (1962). São ao todo nove filmes, um melhor que o outro. Só ficaram de fora, entre as obras de primeira grandeza, Cidadão Kane e A marca da maldade, lançados anteriormente por outras distribuidoras.
É impossível dissociar o cinema de Orson Welles da figura de seu realizador: ambos brilhantes, desmesurados, incômodos, indomáveis. Toda a sua filmografia, desde Cidadão Kane (1941), pode ser vista como variações em torno do tema da grandeza e da fragilidade humanas, do caráter vão da riqueza, da fugacidade do poder. Ascensão e queda de indivíduos “maiores que a vida”: Kane, Amberson, Arkadin, Quinlan… E também Macbeth, Othello, Falstaff, claro. Não foi por acaso que Welles tanto se identificou com a obra de Shakespeare.
Welles viveu na própria pele, como se sabe, essa história de apogeu e ruína. Aos 25 anos, era um gênio mimado que tinha Hollywood a seus pés. Ou assim parecia. Bastou um passo em falso – cutucar, com Kane, o magnata da mídia William Randolph Hearst – para cair em desgraça, despertando a desconfiança dos estúdios e o despeito de colegas. Criou-se então o estigma do cineasta megalômano, egocêntrico, caprichoso e perdulário, do qual ele nunca se recuperaria.
Não cabe aqui falar de cada um dos títulos dessa obra extraordinária, feita de inventividade narrativa, exuberância plástica e potência dramática. Destaco os dois documentários do lote, que ajudam a conhecer melhor o cineasta e sua circunstância: It’s all true (1942/93) e Verdades e mentiras (1973). O primeiro resgata e discute o documentário em episódios que Welles realizaria no Brasil e no México em 1942 e que restou inacabado – e abandonado durante meio século, até que alguém encontrou por acaso parte do material rodado aqui, incluindo o episódio completoJangadeiros.
Brasil, verdades, mentiras
Além de toda a reconstituição dos conturbados acontecimentos da época, que resultaram na dupla mutilação de It’s all true e de Soberba, cuja montagem o diretor supervisionava à distância, o documentário vale sobretudo pelas imagens da saga dos pescadores cearenses que percorreram numa jangada milhares de quilômetros da costa brasileira para conversar com o presidente Getúlio Vargas e pedir direitos trabalhistas para sua categoria. Na reencenação de Welles, com os próprios personagens da epopeia, as cenas são de uma beleza plástica e de uma profundidade humana que só encontram paralelo no Tabu de Murnau e em Que viva México!, de Eisenstein. Aqui, o episódio completo (do qual, infelizmente, o som original se perdeu):
Pelos depoimentos de quem viveu a aventura brasileira de Welles (entre eles Grande Otelo), e do próprio diretor, sentimos que ele, de alguma maneira, foi feliz entre nós. Para o bem ou para o mal, sua vida nunca mais seria a mesma depois dessa tórrida temporada nos trópicos.
O outro documentário, Verdades e mentiras, é uma deliciosa – e incrivelmente moderna – declaração de amor e humor de Welles aos grandes falsários, a começar por ele próprio. Uma discussão sobre os conceitos de autoria e autenticidade na arte e, simultaneamente, sobre o poder ilusionista do próprio cinema. Neste filme, um dos últimos que o diretor chegou a concluir, ele aparece inteiro, em toda a sua grandeza contraditória, ao mesmo tempo gênio e charlatão. É ver para crer.