Qual o sentido da vida? A pergunta que todo ser humano se faz, pelo menos uma vez ao longo de sua existência, não tem uma única resposta. Se é que comporta alguma resposta. Foi a partir desta indagação, contudo, que o diretor Carlos Nader começou a filmar, em 1995, o documentário Homem comum (2014), novo título da coleção de DVDs do Instituto Moreira Salles. Durante quase 20 anos Nader acompanhou o caminheiro paranaense Nilson de Paula, registrando suas viagens e a vida em família, e compôs um retrato ao mesmo tempo particular e universal do cotidiano corriqueiro atravessado pela proposição de uma questão metafísica, grandiosa, e nunca resolvida. Uma “caçada sem trégua ao inexprimível”, como escreve o ensaísta e músico José Miguel Wisnik no livreto que acompanha o DVD, que será lançado com a exibição do filme dia 2 de fevereiro no Espaço Itaú de Cinema Augusta, em São Paulo (seguido de debate com Wisnik, Nader e o também diretor Daniel Augusto), e dia 4 na Sala José Carlos Avellar, no IMS-RJ (com uma conversa entre Nader e o documentarista João Moreira Salles).
Premiado como melhor documentário brasileiro de longa-metragem no festival É Tudo Verdade de 2014, o filme, montado originalmente em duas versões, chega ao DVD com vinte minutos a mais do que aquela exibida nos cinemas. Para Nader, contudo, não é uma “versão do diretor”, porque ambas são. O cineasta, que construiu uma ponte entre a vida de Nilson e a ficção dinamarquesa A palavra (1955), de Carl Theodor Dreyer, também afirma que sua obra “não se limita a serpentear entre os limites da linguagem cinematográfica”. Como ele escreveu no texto abaixo, igualmente publicado no encarte que acompanha o DVD – no qual evoca as ideias do francês Marcel Proust –, “Homem comum acredita que acima da “rede de analogias” que compõe uma grande obra há uma outra rede, ainda maior, aquela que relaciona todas as grandes e pequenas obras e cria o tecido da realidade narrativa da humanidade, a nossa ‘verdadeira vida’”.
Comunicar o incomum
Carlos Nader
Documentário e ficção, ensaio e narrativa, memorialismo e olhar, reflexão e reflexo, Homem comum é um filme impuro. E por ser impuro à essa maneira, é puro Proust. Logo Proust, que detestava o cinema. Logo Proust, que nem considerava que aquela que foi batizada Sétima Arte, ainda durante a época em que ele atuava como escritor, em 1912, fosse sequer uma expressão artística. “Alguns gostariam que o romance fosse uma espécie de desfile cinematográfico das coisas. E uma concepção absurda. Nada se afasta mais daquilo que percebemos da realidade do que a visão cinematográfica”, escreveu ele em Le Temps Retrouve [O tempo redescoberto], último volume de sua obra.
Com uma ideia na cabeça e uma madeleine na boca, vou tentar voltar no tempo para contextualizar a tal “visão cinematográfica”, que foi rechaçada com tanta veemência por um dos mestres que mais admiro. Não é o que parece. No comecinho do século xx, Proust já vivia recluso em sua própria câmara escura, o quarto em que criava Em busca do tempo perdido. Para alguém que há muito tempo não visitava outras salas de projeção além dessa em que ele mesmo projetava sua vida mental no papel, o cinema era apenas a memória de uma tecnologia fascinante, sim, mas inventada por empresários na década anterior para descrever o visível com uma precisão técnica. Essa ferramenta poderosa de representação objetiva da realidade funcionava como uma espécie de espelho do mundo que era mágico, mas que também era apenas químico, ainda isento de vocações artísticas.
É verdade que ainda antes de insular-se, Marcel Proust foi contemporâneo de Georges Méliès, um ilusionista circense que já utilizava o cinema com alguma ambição autoral. Ainda que realizasse, naquela época, obras que não eram muito mais que uma peça de teatro popular reproduzida em celuloide, Méliès quase sempre incluía na narrativa algum truque de prestidigitação tecnológica, algum efeito especial que bem poderia ter dado a algum profeta audiovisual daquela época o vislumbre das enormes possibilidades futuras do cinema. Não conheço registro de que Proust tenha visto algum filme de Méliès. Se viu, não exerceu neles seus dons visionários e continuou achando que a linguagem cinematográfica era sinônimo daquilo que ele mais odiava na literatura, a simples descrição imediata do visível, o espelhamento objetivo da vida, o reflexo irrefletido do mundo.
Acontece que esses conceitos todos não passavam de meras contradições em termos para o escritor francês. Em sua cabeça eterna, objetividade e realidade serão sempre incompatíveis. O real tem que ser necessariamente subjetivo, perspectivo, perceptivo, já que ele nasce de uma relação entre as coisas do mundo e a pessoa que as percebe. “Aquilo que chamamos de realidade é uma certa relação entre sensações e lembranças que nos cercam simultaneamente — relação que suprime uma simples visão cinematográfica que se distancia do que é verdadeiro na mesma medida em que pretende se ligar a ele — relação única que o escritor deve reencontrar ao encadear para sempre dois termos diferentes em sua frase”.
O gênio da subjetividade literária nunca acreditou no literal. Ou no absoluto. Só o relativo pode existir. A realidade e a arte — que ele, aliás, chamava de “verdadeira vida” — concebem‑se sempre a partir da relação que alguém estabelece entre dois objetos diferentes, num olhar, numa frase, numa melodia ou numa cena. O que cria o real ou a obra é sempre um milagre, realizado por um ser humano. Em sua busca por tempo e sentido, Proust o definiu como o “milagre da analogia”. Nessa mesma batida, Pietro Citati, um dos maiores especialistas na literatura proustiana, também definiu‑a em apenas três palavras. “Rede de analogias”. Essa rede avant la lettre se contrapõe com todas as suas letras à linearidade daquele odiado “desfile cinematográfico” que apenas espelha o visível. Sem ela não haverá realidade e, muito menos, arte.
Agora, o que será que aconteceria se Proust, morto em 1922, tivesse ganhado uma prorrogação em seu tempo de vida para assistir ao “desfile” inicial de O encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, quando ele foi lançado em 1925? Adoro imaginar meu escritor mais querido tendo uma taquicardia bem ritmada, seguida de uma revelação luminosa. Ele perceberia que a obra de Eisenstein foi a primeira a afirmar que a relação extrínseca entre dois planos filmados pode ser mais significativa do que o conteúdo intrínseco de cada um deles. Ao assistir aos cortes fulminantes do ninja russo, Proust entenderia, num flash, que a gramática do cinema também é toda fundada em analogias. E não só naquelas que relacionam dois planos. O espectro analógico do cinema é muito mais amplo. Ele se inicia na própria relação entre os dois fotogramas distintos que, em qualquer filme, têm que ser unidos para criar a ilusão do movimento físico, cinético. E se estende, pelo menos, até a necessária justaposição das duas cenas diferentes de cada vez, para criar o movimento narrativo, diegético. Esse fluxo de nexos pode encadear qualquer coisa, mas ele ganha potência na medida em que descobre ou, como nos lembra Proust, redescobre relações ocultas. A ideia é sempre religar aquilo que havia perdido a liga. Comunicar o que restava incomum.
Nesse sentido, Homem comum tenta ser mais realista que o rei da relação. Sim, talvez ainda mais proustiano do que Proust. Além de relacionar palavras, fotogramas, planos, cenas, estabelece‑se como um filme que é sempre constituído pela relação de dois outros filmes diferentes. Ao documentário sobre o passado de um caminhoneiro paranaense justapõe‑se um outro documentário sobre o seu futuro. À ordinária vida filmada desse caminhoneiro, interconecta‑se a teatralidade do grande clássico dinamarquês, Ordet [A palavra] de Carl Theodor Dreyer. Às cenas desse Ordet real, lindamente filmado em 1955, refletem‑se as de um Ordet fake, novelesco, realizado em 2012 na Inglaterra.
Essa trindade de relações narrativas quer produzir um universo de milhões de cores mitológicas, um caleidoscópio cinematográfico, uma mandala de experiências fílmicas. Homem comum acredita que acima da “rede de analogias” que compõe uma grande obra há uma outra rede, ainda maior, aquela que relaciona todas as grandes e pequenas obras e cria o tecido da realidade narrativa da humanidade, a nossa “verdadeira vida”.
P.S. Neste contexto, não custa lembrar que a versão de Homem comum lançada neste DVD tem 103 minutos, ao contrário da versão que foi aos cinemas comerciais com 83 minutos. Não se trata de uma “versão do diretor”. Ambas são. E que talvez Homem comum não seja exatamente um filme, mas uma relação entre duas versões.