Diário da Tarde: o volume involuntário (II)

Literatura

15.11.13

Em 18 de novembro, uma segunda-feira, o IMS lança às 19h30, no auditório da Livraria da Travessa Leblon, no Rio de Janeiro, o livro Diário da tarde, do cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. No lançamento, será realizada uma conversa aberta ao público entre os cronistas Renato Terra, da revista oiauí, e Xico Sá, da Folha de S. Paulo.

Jornalista desde que se entendeu como gente, aos 17 anos de idade Paulo Mendes Campos começou a publicar artigos em periódicos da capital mineira. A partir daí não saberia viver sem jornal. Em 1945, desembarcou no Rio e passou a colaborar na imprensa da então capital da República, desde o Correio da Manhã, o primeiro, passando pelo O Jornal e tantos outros. Só na revista Manchete ele escreveu em torno de mil crônicas.

Terminou a vida como colaborador do Jornal do Brasil, onde ficou de 1986 até sua morte, em 1991. Desse modo, viveu da imprensa e para a imprensa, e até mesmo ele se surpreendeu com a aposentadoria que acabou por conseguir em 1981, como funcionário da Empresa Brasileira de Notícias, hoje Agência Brasil.

Soube dosar bem o tempo livre que a nova condição de aposentado lhe garantia. Repartia as horas destinadas ao cultivo de flores e plantação de frutos da Gruta do Jacob, seu sítio em Petrópolis, para elaborar o Diário da Tarde, cujas cinco últimas seções se organizam nessa sequência: “Bar do Ponto” “Pipiripau”, “Grafite”, “Suplemento infantil” e “Coriscos”.

Bar do ponto

A exemplo do que já fizera no ensaio literário “Cinema homérico”, em que incluiu, de forma velada, experiência pessoal e afetiva, na seção “Bar do Ponto” da edição 12 do Diário da Tarde Paulo Mendes Campos homenageia seu Quinzim, empregado da Gruta do Jacob, seu Quinzim, personagem de “Inverno com tudo”: “Já mandei seu Quinzim cortar a lenha/ Os agasalhos sobram da sacola/ Amanhã vou subir a serra da Estrela/ Tudo certinho? Tudo certinho lá na Gruta do Jacob”. […]

A par do cotidiano presente no “Bar do ponto”, esta seção também pode conter apenas uma reflexão, como em “Linhas tortas”, da edição 9 do DT. Tudo é saboroso, fluente e organizadamente livre nesse tabloide.

Pipiripau

A escolha do nome “Pipiripau” para a quinta seção do Diário é curiosa, e não menos curiosa sua origem.  Quando Drummond pensou em publicar o primeiro livro, pediu a opinião de Mário de Andrade a respeito do título. Mandou ao amigo a lista de poemas, dizendo que sua ideia era recolher parte dos versos sob o título Pipiripau. Procuraria outro título para o resto. Escreve ele em carta de Belo Horizonte, no início de 1928:

Estou indeciso quanto ao meu livro. Não sei se publico já a Minha terra tem palmeiras, com os meus poemas mais caracteristicamente brasileiros, ou se publico um livrinho meio fantasista, meio caprichoso chamado (só para inquizilar) Pipiripau.

Quando ao título, Mário não teria dúvidas: em carta de 28 de fevereiro do mesmo 1928 declara que Pipiripau é “nome gostosíssimo”. Vê-se que o autor dos versos teve muito tempo para pensar antes que os poemas, publicados todos em Alguma poesia, em 1930, marcassem sua entrada de glória na poesia brasileira.

Mas de onde vem a ideia de Pipiripau? De 1906, quando um menino de 12 anos de idade chamado Raimundo Machado de Azeredo, morador da antiga colônia Américo Werneck, conhecida como Pipiripau em Belo Horizonte, começou a construir um presépio. No início, apenas com uma imagem do menino Jesus e uma manjedoura. Encantado com a própria criação, o menino foi acrescentando personagens e acabou por reproduzir em imagens a história bíblica, do nascimento de Jesus até a ressurreição. A ela foi mesclando representações do cotidiano de Belo Horizonte: parques, procissões, feiras, com figuras de trabalhadores: boiadeiros, carpinteiros, sapateiros, ferreiros, pescadores.

Dedicou-se a essa construção durante toda a vida. A obra, ao final, se compôs de 650 figuras que se movem em 45 cenas religiosas ou cotidianas de Belo Horizonte. Para as cenas de movimentos rápidos, usou a técnica do papier mâché. Optou pelo gesso para as que movem lentamente.

(Crédito: Miguel Aun)

 

(Crédito: Miguel Aun) | Clique na imagem para ver em tela cheia

Originalmente a movimentação era feita por um sistema manual, passando por máquina a vapor, até que em 1927, com a chegada da luz elétrica na região onde o artista morava, o Presépio Pipiripau, como foi batizado, passou a ser movido por motor elétrico. Hoje é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e integra o acervo da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

(Crédito: Miguel Aun) | Clique na imagem para ver em tela cheia

Drummond publicaria dois poemas sobre o fabuloso engenho de Raimundo Machado de Azeredo: “Pipiripau”, no Diário de Minas de 30 de janeiro de 1927, sob o pseudônimo de Antônio Crispim, e “Presépio mecânico do Pipiripau”, recolhido em Boitempo.

Tal como a movimentação das personagens no Presépio do Pipiripau, a coluna do Diário da Tarde que leva esse nome não é de natureza única. Alterna pequenas histórias, poemetos e aforismos. Liberdade, ainda que dentro de uma estrutura, parece querer dizer o editor do DT. Na seção “Pipiripau”, tanto vale narrar episódios como o protagonizado por Guimarães Rosa, que fez questão de vestir paletó para falar, por telefone – sim, por telefone –  com o então presidente Juscelino Kubitschek, como vale brincar com a tristeza em “Réplica para Corazzini”:

Sou uma criança triste

que tem vontade de beber.

Sou uma criança triste

que tem vontade de viver.

Eu não sei senão viver.

Aqui Paulo certamente responde, parodiando, ao poeta italiano, autor da “Desolazione del povero poeta sentimentale”, cujos versos Manuel Bandeira dizia de cor para dar vazão à enorme tristeza que sentia na década de 1920, quando, tuberculoso e só, morou na rua do Curvelo, em Santa Teresa. Conta ele em sua autobiografia literária, Itinerário de Pasárgada, que não só se apaixonou pelo poema de Corazzini, como se identificou com o autor, de quem era mais velho apenas um ano. O destino poupou o poeta brasileiro, que se curou da tuberculose e viveu 82 anos muito bem vividos, mas levou Corazzini, vítima do mesmo mal, antes que completasse duas décadas de vida. Estes eram os versos que tanto consolavam Manuel Bandeira:

Oggi io penso a morire

Io voglio morire, solamente perchè sono stanco.

[…]

Vedi che non sono un poeta:

sono un fanciullo triste che ha voglia di morire.

Alguns anos antes de dar a resposta em versos, mencionada há pouco, Paulo Mendes Campos escrevera na contracapa de um de seus 55 cadernos de estudos: “Por que me chamas um poeta?/ Eu não sou um poeta;/ sou uma pobre criança que chora, uma criança triste que tem vontade de morrer. Eu não sei senão morrer…”

Era a sua tradução para os versos de Corazzini: Perché tu mi dici: poeta?/ Io non sono un poeta/ Io non sono çhe un piccolo fanciullo che piange.

Grafiti

Assim como quer dizer o nome, “Grafite”, a sexta coluna do DT, é pequena, ligeira, como um rabisco feito a lápis. Originalmente publicado em Manchete 654, de 31 de outubro de 1964, “Sonoroso”, que integra “Grafite” da edição 13 do Diário, é encontrado também em caderno de Paulo Mendes Campos, datado de 1962.

Suplemento infantil e Coriscos

Em “Suplemento infantil”, valem desde as referências ou evocações a poetas como Keats a uma anedota a respeito de Velásquez. A seção certamente foi pensada com base na crença do autor de que “a infância é apenas isto: a sensação de que viver é de graça”: sem subestimar o conteúdo, ele concebeu essa coluna com graça e inteligência refinada, e  a dirigiu aos que vivem com a sensação de absoluta gratuidade. Uma brincadeira, sim, em “Belloc em dezembro”, na edição 5 do DT, mas por meio da qual divulgou o nome do escritor britânico Hilaire Belloc: “Aos meus amigos desejo tudo de bom!/ Bem-bom!… bem-bom!… bem-bom!/ Aos inimigos, tudo de mal!/ Na-tal!… Na-tal!… Na-tal!”

Em um dos seus cadernos, datado de 1962, Paulo escreveu: “Todas as mulheres, fiéis ou não, aguardam em febre a volta de Ulisses“.

Muitas vezes eles fez alterações, como nesse caso em que, ao editar o aforismo na seção “Coriscos na floresta” da edição 4 do Diário da Tarde, modernizou-o, embora conservando a ideia heroica da espera: “Todas as mulheres, fiéis ou não, aguardam, tricotando nervosas, alguma coisa, um telefonema de Ulisses”.

Ainda com pequena diferença é o aforismo de “Coriscos no acaba mundo” da edição 1 do DT: “Somos uns porquinhos: e o senhor nos cria, engorda e mata”. Na versão encontrada no caderno 15, de seu arquivo, lê-se:

Assim foi ele construindo o seu jornal. Com liberdade, sim, mas sem abrir mão do método. Pode parecer estranho ao leitor a máxima: “Só tenho uma: viver dá azar”, de “Coriscos no acaba mundo”, na edição 12 do DT. Algum truncamento? Erro da edição? O famoso caderno cinzento de Paulo Mendes Campos, guardado em seu arquivo no IMS, resolve o enigma. A máxima completa é:

Publicada corretamente na coluna “De um caderno cinzento” de Manchete 654 de 31 de outubro de 1964: “Tenho uma única superstição e chega: viver dá azar”.

Em dia de chuva ou sol, o Diário da Tarde é leitura super agradável.

* Elvia Bezerra é coordenadora de lliteratura do IMS.

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