Esta é a segunda parte da série “Escolas e samba: Crônica de um divórcio anunciado”. Clique aqui para ler a primeira parte, Do rancho-escola ao “Professor” Paulo.
Os heróis fundadores das escolas de samba foram antes de tudo músicos e poetas. Na Portela brilhou Paulo; na Mangueira, Cartola; no Estácio, Ismael; no Salgueiro, Antenor Gargalhada; no Império Serrano, Mano Elói. Todos, uns mais outros menos, tendo gravada, em sua identidade de sambistas, a palavra mágica: “compositor”.
Durante muito tempo, pertencer ao seleto grupo de compositores de uma escola de samba era um privilégio e uma honra, que dependia do talento poético e musical do sambista. Aceito na ala, por indicação ou mesmo “por concurso”, o compositor estava autorizado a mostrar seu talento no terreiro. O número de sambas que poderia apresentar, a cada ano, variava de escola para escola, sendo em geral dois.
Esses sambas tinham vida curta, pois a renovação do repertório era obrigatória a cada ano. Mas essa curta existência resumia-se ao terreiro, pois muitos deles, embora nunca gravados, permanecem até hoje na memória do mundo do samba, como alguns escritos por Jonas da Silva, o legendário Zinco, e seu parceiro Jaguarão, dos Filhos do Deserto, da qual nasceu a Lins Imperial; de Osório Lima, da Beija Flor e do Império Serrano, autor de letras magistralmente desconcertantes; e de tantos outros.
Ensaio nos anos 1950, quando o mundo do samba era um universo à parte, com regras próprias (José Medeiros/Acervo Instituto Moreira Salles)
Apresentados no terreiro, destacavam-se aqueles sambas mais do agrado das pastoras, que eram o termômetro do sucesso, com suas vozes entusiasticamente esganiçadas. E o mesmo valia para o samba-enredo.
Chegado o mês de dezembro, a escola efetivamente se mobilizava para o desfile carnavalesco. A comissão de carnaval se reunia com os compositores e entregava a eles o histórico do que a escola ia apresentar, fornecendo as explicações necessárias. De posse desse histórico e às vezes recorrendo a pesquisas complementares, o compositor fazia o samba, quase sempre em parceria.
Num dia determinado, os sambas-enredo eram apresentados. Aí, cada escola usava seus critérios de seleção, como num campeonato. O melhor era o escolhido, acontecendo, muitas vezes, um ou mais concorrentes retirarem-se formal e expressamente da disputa para apoiar aquele samba que consideravam melhor que o seu. Isso, antes de o samba-enredo tornar-se uma mercadoria como outra qualquer.
O fato é que, nos anos 1950 e 60, o mundo do samba se estruturava, realmente, como um universo à parte, com regras, usos, costumes e até um vocabulário peculiar. Nesse universo, as células principais eram as escolas, cada uma delas, por sua vez, surgidas em geral de núcleos familiares que as dirigiam e davam suporte.
Era um tempo em que alegorias, fantasias e até boa parte dos instrumentos, como pandeiros e tamborins, eram de fabricação doméstica; e no qual o que valia era a participação comunitária. No Salgueiro, por exemplo, para o carnaval de 1961, que tematizava o Aleijadinho, a bandeira, que apresentava requintados ornatos barrocos, foi bordada por pastoras da escola.
Isso pode ser visto, claramente, em um livro tão fundamental quanto desconhecido que é Império Serrano, primeiro decênio, de Francisco de Vasconcellos (ed. particular, 1991). Na farta documentação trazida pelo livro, contrastando com os orçamentos milionários de hoje, vamos ver diretores fazendo “vaquinha” para financiar o carnaval de sua escola até a liberação da verba oficial; bem como ofício solicitando madeira para construir um barracão para que nele a escola realizasse seus ensaios fechados, guardasse seu material, confeccionasse e alojasse seus carros alegóricos para “protegê-los da intempérie”. Vamos ver até instrumentos tomados emprestados a outras agremiações e mesmo a colégios da vizinhança.
Na mesma medida, vamos ter notícia de ensaios adiados em respeito ao luto de famílias ou pessoas ligadas à agremiação ou à comunidade. Mas vamos constatar, também, toda a alegre e exuberante sociabilidade do mundo do samba, expressa em visitas, congraçamentos de toda espécie e, sobretudo, muita festa.
Os locais dessas festas eram gafieiras e clubes como o Dancing Vitória do Brasil, em Irajá, no cruzamento das atuais avenidas e antigas estradas Automóvel Clube e Monsenhor Félix – onde, mais adiante, se situava o Danúbio, que, apesar de ostentar o pecaminoso qualificativo de “boate”, também era salão de festas do samba. Eram também o Pietense, na rua João Martins, Piedade; o Cachopa Dancing, na estrada do Portela; a banda Portugal, na Praça Onze; o High-Life Club, na rua Santo Amaro; o Para Todos, em Pavuna; a Cedofeita, em Bento Ribeiro, e mesmo a baía de Guanabara.
E o formato das festividades variava desde o baile até o piquenique em Paquetá, passando pelas “monumentais” passeatas de automóveis; pelos passeios marítimos na baía, a bordo do legendário navio Mocanguê; pelas festas juninas à caipira, pelos torneios de partido-alto e pelos batizados de alas; até uma eclética programação em cujo folheto de divulgação lia-se:
“…6 h. — Hasteamento da bandeira, com grande queima de fogos; 7 h. — Abertura da urna para votação da nova diretoria; 8 h. — Calouros infantis, com prêmios para os vencedores; 10 h. Partida de futebol de Casados X Solteiros (…); 11 h. — Início da feijoada; 18 h. — Término da feijoada; 19 h. — Grande baile, animado por grande orquestra; 21 h. — Apresentação das candidatas a Rainha (…)”.
Nessas festanças, comia-se bem e muito. Principalmente, o “suculento angu à baiana”, preparado por experientes profissionais da arte culinária, a indispensável feijoada, a “suculenta peixada” e até mesmo o churrasco, então um tipo de refeição não muito em voga no Rio. E em quase todo baile havia sempre o peru assado que, geralmente à meia noite, era oferecido como prêmio à mesa que melhor “se destacasse no bufê”, ou seja, que consumisse mais cervejas, refrigerantes e salgadinhos.
Eram festividades a que compareciam, nos pontos mais distantes do Rio e da Baixada, convidados ilustres, relacionados nos prospectos de divulgação como “Nozinho e seus escriturários”, “Fuleiro e seus camaradas”, “Sete Quedas e seus alunos”, “Dalzuite e suas amiguinhas”, “Sinhá do Estácio”, “Jurema do Irajá”, “Rozária de Mangueira”, “Ilma e sua progenitora” etc. Além dos políticos de sempre.
É que a distensão política que se seguiu ao fim do Estado Novo teve profundos reflexos no mundo do samba. Multiplicaram-se as uniões e federações, sempre ao sabor de interesses políticos partidários. Cresceu, então, a partir de 1950, a presença, nas escolas, de vereadores ou candidatos, o que povoou os prospectos das festas de convidados como “Vieira de Melo, Amigo Nº. 1 das Escolas de Samba”, “nosso amigo de sempre e de longos anos Frederico Trotta”, Salomão Filho, Pedro Faria e muitos outros.
Mas o samba ia levando “na maciota”.
A Velha Guarda da Portela em seu início, em 1970, com o “padrinho” Paulinho da Viola (à esquerda): tradição preservada (Acervo Tinhorão)
Outro fato que o citado livro de F. Vasconcellos informa é que, naquele tempo, como “bom cabrito”, o malandro tinha a humildade de pedir desculpas. Como na carta em que um famoso componente do Império Serrano, suspenso pela diretoria, assim solicitava anistia:
“Tendo eu cumprido um terço da penalidade estabelecida por esse órgão, rogo-lhes não com o direito de ter cumprido um terço da pena, comutação do restante haja visto a aproximação do carnaval. Sendo um imperiano de coração desejava tomar parte nos ensaios restantes para que pudesse com o máximo dos meus esforços cooperar no nosso quarto carnaval. Sem mais peço desculpas pelas faltas e aproveito o ensejo para apresentar-lhes os meus protestos de elevada estima e consideração”.
Numa outra missiva transcrita no indispensável livro de F. Vasconcellos, um pedido de ajuda:
“Serei julgado em setembro — diz o missivista — e até lá terei que dar o dinheiro ao advogado, o que está sendo-me difícil. Assim sendo quero que apeles para esta gloriosa agremiação no sentido de me auxiliarem um pouco. Sei que todos ficaram satisfeitos com a desforra sobre os matadores do (…) e assim sendo esperarei confiante em todos do Império Serrano e em você meu particular amigo.”
Mas em termos de ajuda financeira, o “Livro de Ouro” era a grande instituição. E quanto mais caprichado fosse o seu termo de abertura, mais possibilidade de sucesso ele teria, como foi o caso do livro imperiano em 53, que assim, corrigida apenas a grafia, introduzia a “facada”:
“Ao ouvirmos as badaladas dos sinos que anunciam o Natal e o espocar dos fogos que nos traz a contagiante alegria de atravessar mais um ano de existência…”
Havia também muita devoção. Como na missa celebrada no dia 23 de abril de 1950, na igreja de São Luiz Gonzaga, em louvor a São Jorge, à qual se seguiria procissão com música e fogos, encerrando as festividades com baile na sede da Serrinha.
Nesses eventos, eram destacadas as presenças de sambistas como Jamelão e Zé Kéti, por exemplo, em festas e solenidades nas quais o modo de vestir, principalmente entre os homens (jaquetão “tipo saco”, calça “boquinha”, sapato de salto “carrapeta” e chapéu), era o principal traço identificador da condição de sambista.
Nota do autor: Este texto apresenta argumentos também presentes no nosso livro Zé Kéti, o samba sem senhor, de 2000, no momento fora de catálogo.