Enquanto o noticiário vai passar as próximas semanas, talvez meses, batendo insistentemente na tecla do país dividido – só três milhões de votos de diferença –, quem tem outras perspectivas sobre as origens dessa divisão pode começar a pensar numa vírgula. A ideia não é originalmente minha, mas achei das mais inteligentes sacadas da reta final da eleição. Quem apoiou a reeleição da presidenta Dilma Rousseff ostentava um de seus melhores slogans – “Dilma muda mais” – espalhado em adesivos, faixas e fotos nas redes sociais. Coube ao meu amigo Rafael Haddock-Lobo perceber que, a partir da vitória, se tratava de incluir aí uma vírgula, produzindo um equívoco, um lapso, uma nova significação para a frase: “Dilma, muda mais”.
Com a vírgula, o que era afirmativo ganha tom de reivindicação, de apelo, de clamor. Para que a vírgula vigore, no entanto, a partir da vitória passamos nós, eleitores de Dilma, a olhar menos para o confronto com o PSDB e mais para as forças de esquerda que compuseram a chance de vitória do PT. Em grande medida, pode-se dizer que o segundo turno sofrido foi consequência do desencantamento de parte da esquerda com o descaso do projeto petista por novos avanços. Se fatores como o enfrentamento da desigualdade social, econômica e racial foi decisivo para o apoio à reeleição, há também um grande número de críticas que fez com que PSOL e Rede ganhassem espaço político, seja na questão ambiental, cara ao grupo de apoio a Marina Silva, seja na exigência de ampliação da participação popular, ponto cego no governo Dilma e uma das pautas mais interessantes do PSOL.
O lado ruim do alarido tucano contra o PT e o barulho do argumento da alternância de poder é que esses ruídos acabem sendo mais altos do que a oposição de esquerda, em silêncio estratégico desde o início do segundo turno. Entendo a vírgula como o mecanismo que pretende virar a frase para a esquerda, argumentar a favor de pautas políticas até agora ignoradas, como o elemento de linguagem que pretende levar Dilma para lugares onde ela ainda não esteve. A armadilha da polarização, no entanto, é que o novo governo pretenda se pautar pelo enfrentamento a um suposto PSDB fortalecido como oposição. “Dilma vírgula muda mais” quer dizer que está na hora de olhar para os aliados, o que significa olhar para as ruas, onde os protestos iniciados no ano passado pediam esse “muda mais”.
Para isso, no entanto, me parece que existe uma frase depois da vírgula, em vigor durante todo o primeiro mandato, a ser extinta: Dilma, a gerentona. Em nome desse perfil gerencial, seu governo foi marcado por uma pauta principalmente desenvolvimentista, construída sobre os pilares do crescimento econômico e do combate à pobreza e à desigualdade. Se a redução da desigualdade é, de fato, seu maior trunfo, é também o que a enfraquece. Não, eu não vou escrever contra o combate à desigualdade brasileira. Vou escrever contra a percepção de que, em nome do combate à desigualdade, qualquer coisa possa ser negociada. Não, não pode. É prioridade inequívoca, mas de alguma forma tem funcionado como a fundamentação de um modelo gerencial que trava o próprio combate à desigualdade, já que continua sendo gestado e gerido de cima para baixo, do gabinete para o povo, do Planalto Central para o resto do país. Abrir-se mais à participação popular do que ao PMDB, mais aos movimentos sociais do que à bancada evangélica, mais aos representantes indígenas do que às empreiteiras, mais aos grupos LGBTs do que aos homofóbicos de plantão é o que vem depois da vírgula e da vitória.
Uma das marcas mais interessantes dos protestos de rua foi a pauta descentralizada, aberta a todo tipo de reivindicação, não necessariamente organizada por partidos políticos. Cada um de nós tinha seu próprio cartaz, slogan, palavra de ordem. A minha, aquela que eu gostaria de acrescentar depois da vírgula do “Dilma, muda mais”, é contra a misoginia. Dilma Rousseff foi a primeira mulher eleita e agora reeleita presidenta de um país em que os números de participação feminina na política são pífios. A mim parece que isso dá a ela uma responsabilidade peculiar: combater a misoginia. Essa é a minha pauta para os próximos quatro anos, como foi nos últimos quatro. Tenho insistido em dizer que muitas das críticas ao governo Dilma passam por uma misoginia por vezes velada, por vezes escancarada. Quando ouço na rua alguém dizendo “foi só colocarem uma mulher lá e virou bagunça” ou escuto um economista consagrado se referir a ela como “aquela mulher”, ou ainda quando leio perfis da presidente dedicados a desqualificá-la pela maneira como se veste, pelo corte de cabelo etc., é que penso na pauta que me moverá. Denunciar todas as formas de protesto que se valem da sua condição de mulher para agredi-la. Porque entre as inúmeras divisões das urnas, não posso esquecer que a eleição foi entre um homem e uma mulher. Ela venceu. Nós ganhamos, ponto.