“E se a forma partida elevasse a ‘partida’ à conceito, tendo em vista que a ‘forma partida’ não se reduz ao partido político?” Por causa dessa pergunta, e por considerar, como o filósofo Peter Sloterdijk, que livros, artigos e ensaios são cartas enviadas a amigos, hoje me endereço diretamente a uma amiga – a filósofa Marcia Tiburi – e a sua proposta de criação de um Partido Feminista, cujo debate vem sendo feito em diversas cidades do país. Ontem em São Paulo, semana passada no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de estar no auditório da OAB com tantas mulheres (e alguns homens) dispostos a discutir a criação de um partido feminista. Quando aceitei ouvi-la, estava particularmente curiosa sobre como, diante de uma crise de representação que é, do meu ponto de vista, marca da política contemporânea, e diante de uma falência completa das formas tradicionais de fazer política, uma filósofa tinha a ousadia de juntar duas palavras tão complicadas – partido e feminista – numa proposta partidária.
Sobre partidos políticos, escrevi um artigo crítico, e Marcia Tiburi, numa leitura atenta e generosa que tento retribuir, replicou meus argumentos, avançando em questões que me interessam debater. Estamos, ambas, movidas por uma mesma questão: como transformar a democracia formal em democracia de fato? Resumo o debate a este ponto para retomar um argumento feminista clássico. Nunca houve um regime que pudesse se auto-denominar democracia antes que as mulheres tivessem direito ao voto. É uma reivindicação lógica: se as mulheres são metade da humanidade, nenhum regime representativo consegue fazer justiça a essa denominação se as mulheres não tiverem participado da escolha. Historicamente, mulheres foram subrepresentadas na estrutura democrática, uma espécie de deficiência originária na história da democracia desde a Grécia antiga (até porque a Grécia hoje é outra conversa). Ter um partido feminista, portanto, poderia ser uma estratégia política decisiva para suprir esse déficit (os termos econômicos são propositais, é preciso cálculo matemático para vencer batalhas parlamentares que temos perdido de lavada).
A conquista pelas mulheres do direito ao voto é resultado de inúmeras lutas. De batalha em batalha, desempenhamos importante papel no processo de aprimoramento do sistema representativo, ainda que, como argumenta o filósofo Jacques Rancière, a representação tenha se posto a serviço da manutenção do poder na mão de poucos. Era sobre esse e outros problemas que eu pensava enquanto ouvia o debate sobre a formação de um partido feminista. A partir do que ouviu, Marcia Tiburi saiu da conversa com um caderninho vermelho cheio de anotações e propôs uma transformação importante. De Partido Feminista para partidA, numa referência explícita ao gênero feminino – A – e num deslocamento da letra maiúscula para o final, porque se A indica força, que esta força esteja no gênero feminino que a palavra assim grafada apresenta. Essa é uma proposta que me seduz, quando diz: “Claro que o campo do partido tradicional tem algo de obscuro. Mas é claro também que a forma partida tem algo de processual em termos de ação. E é isso que podemos perceber na intenção de novas formas de fazer política”.
A partidA carrega a ideia de iniciar, mover, movimentar, daí a gíria que Marcia Tiburi recupera: #partiu. Por isso, partidA, me parece indicar duas transformações necessárias na forma de fazer política representativa, capazes de responder a duas críticas. A primeira crítica: um dos problemas dos partidos representativos tem a ver com a exigência de uma univocidade interna, de uma coerência que estabilize diferenças, e portanto acabe, contraditoriamente, impondo uma forma única para aquilo que só tem potência política se for disforme, plural, equivocado. A segunda crítica: um partido político corre o risco de manter-se no poder não em função daqueles que o elegeram, mas apenas em função de seus próprios interesses de se manter no poder.
A partidA pode dar conta destas duas críticas se consideramos a função da letra A. Primeiro, por acentuar, marcar, exagerar o caráter feminista desta organização de pessoas. Retoma-se, assim, uma das importantes características do movimento feminista ao longo da história, a pluralidade. Há também na palavra partidA a intenção de buscar outra forma – feminina, não masculina ou não tradicional – de exercício do poder. Partir pode ser também compartir, compartilhar. Neste ponto, escrevo com Marcia Tiburi: “poder partilhado não é mais poder simplesmente…”.
A segunda onda do feminismo tem alguns marcos. A entrevista da escritora feminista Betty Friedan ao Pasquim, em 1972, de quem a editora Rose Marie Muraro publicou A mística feminina, o livro que ousava dar nome à insatisfação das mulheres. A segunda onda também começou numa reunião na ABI, em 1975. A partir dali, o movimento de mulheres começou a mudar a cara da sociedade brasileira. Foram inúmeras as conquistas, muitas escritas na Constituinte de 1988 a partir do já famoso Lobby do Batom, outras transformadas em vitórias jurídicas, como a Lei Maria da Penha e o feminicídio como agravante para pena, resultados de uma longa luta pelo reconhecimento da violência contra a mulher como problema político e social. Conselhos nacionais, estaduais, a formalização de uma secretaria especial de política para mulheres, a criação de diferentes organizações não-governamentais com atuações e pautas das mais diversas foram criadas. No entanto, argumenta Marcia Tiburi, é como se muito do tanto que foi feito tivesse se mantido à sombra. A fim de recusar a entrada nas formas tradicionais de política, uma geração inteira de mulheres rejeitou também o protagonismo no campo político, porque, como reconhece a filósofa, “ao manter-se fora algumas pensam nos termos do manter-se limpas, com o estômago a salvo das náuseas políticas de hoje. Outras, que fazem política alternativa de um jeito elegante e sincero, pensam que a vida fora da política institucional, fora dos partidos e do Estado, ou, sobretudo, fora da governabilidade onde se pensa com o clichê de que o poder corrompe, é muito mais rica do que a forma partida.” Mas – aqui não abro aspas por que faço minhas as palavras dela – não podemos perder de vista que o lugar alternativo pode ficar sempre em estado de subalternidade. Queremos dizer com isso, que há momentos na história em que é preciso atuar com força.
Em outras palavras, o que Marcia Tiburi propõe é – para usar uma expressão da moda – sair do armário e entrar na política parlamentar. Fazer isso de outro jeito é o desafio de partida, o desafio da partidA. Para vencer essa partida – aqui como sinônimo de jogo –, é preciso considerar um dos debates que tem mobilizado o movimento feminista há 25 anos, desde a publicação de Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, da filósofa Judith Butler. Trata-se de pensar um feminismo que não seja feito em nome do “sujeito mulher”, o que exige uma identidade prévia do referente mulher a ser representado e, contraditoriamente, obriga a um fechamento no lugar onde se quer reivindicar abertura. Um bom exemplo está circulando pelas redes sociais sob o título “Por um feminismo que ouça a Mallu antes”, demanda de que o feminismo não reproduza aquilo contra o qual as sempre lutamos: tutelem as mulheres. Ou, como há mais de um século reivindicava a feminista anarquista Emma Goldman: “De nada me serve a sua revolução se eu não puder dançar”.
Talvez Marcia Tiburi não concorde comigo, mas se a partidA for dada em direção a um referente vazio de conteúdo, capaz de representar não um grupo previamente restrito a certas características identitárias, mas a todas as singularidades (o que, a rigor, redunda numa outra forma de universalidade, como discuto em texto que endereço ao amigo Vladimir Safatle), a forma partidA passará a funcionar para além das restrições da atual estrutura partidária e ainda trará um novo instrumento para questioná-las.
Por tudo isso, o mais instigante da partidA proposta por Marcia Tiburi está em pensá-la como expressão de uma época “em que massas dão lugar a multidões. Multidões que se libertam e que se perdem e que se refazem, mas que estão acordadas, mesmo que não estejam lúcidas, mesmo que estejam confusas, mesmo que possam, muitas vezes, ser capturadas e reconduzidas a posição das massas humilhadas (tornar-se um fascista é ser humilhado politicamente sem perceber que o é) sem que se deem conta do que fazem. Vivemos uma época em que ninguém mais quer ser representado simplesmente. Em que cada um e todo mundo quer estar junto, fazer e mudar sendo sujeito e ator da própria história. Uma época em que todos com+partilham. E #partem.”