Os dois são alagoanos e não se conheciam até que a polícia do governo Getúlio Vargas levou-os a serem vizinhos no Complexo Presidiário Frei Caneca: Nise da Silveira na Sala 4, o cárcere feminino das presas políticas, que dividiu com Olga Prestes e outras, e Graciliano Ramos, que estava preso no Pavilhão dos Primários.
A comunicação clandestina entre os dois ambientes se fazia por meio da “pororoca”, nome que a escritora capixaba Haydée Nicolussi, uma das presas, deu à barulhenta descarga do banheiro da Sala 4. Como a parede do banheiro fazia divisão com o Pavilhão, as presas cavaram um buraquinho bem ao lado da “pororoca”, criando assim uma forma de se comunicar com os vizinhos.
Mas o encontro entre Graciliano Ramos e Nise da Silveira não teve qualquer caráter de improviso. Ao contrário, tomou um caráter até solene. Verdade que a presença dela na Sala 4 deve ter chegado aos ouvidos do escritor pela “pororoca”, mas revestiu-se de uma certa gravidade no modo como ele descreve o momento em que se apresentam um ao outro, em comovente página de Memórias do cárcere.
Numa passada larga, atingi o vão da janela: agarrei-me aos varões de ferro, olhei o exterior, zonzo, sem perceber direito por que me achava ali. Uma voz chegou-me, fraca, mas no primeiro instante não atinei com a pessoa que falava. Enxerguei o pátio, o vestíbulo, a escada já vista no dia anterior. No patamar, abaixo de meu observatório, uma cortina de lona ocultava a Praça Vermelha. Junto, à direita, além de uma grade larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos. Referiu-se a Maceió, apresentou-se:
– Nise da Silveira.
Noutro lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-a culta e boa, Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço. Nunca me havia aparecido criatura mais simpática. O marido, também médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, em vivo constrangimento.
De pijama, sem sapatos, seguro à verga preta, achei-me ridículo e vazio; certamente causava impressão muito infeliz. Nise, acanhada, tinha um sorriso doce, fitava-me os bugalhos enormes, e isto me agravava a perturbação, magnetizava-me. Balbuciou imprecisões, guardou silêncio, provavelmente se arrependeu de me haver convidado para deixar-me assim confuso.
Não foi exagero do autor de Memórias quando disse a Homero Senna: “Em qualquer lugar estou bem. Dei-me bem na cadeia… Tenho até saudades da Colônia Correcional. Deixei lá bons amigos”. Era verdade. Nise da Silveira me contou, numa das nossas deliciosas conversas, que ele andava com seus chinelos arrastando pelos corredores em absoluta tranquilidade. Não tinha qualquer pressa em sair dali, diferentemente dela, que na noite de São João de 1936, quando foi libertada, depois de um ano e seis meses de prisão, identificava-se com os balões que via no céu, livres.
* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.