Certa dose de fingimento

Literatura

23.11.15

Dois casais-nova iorquinos se encontram no apartamento de um deles a fim de discutir o desentendimento de seus filhos de onze anos. Eis o enredo e o cenário de Deus da carnificina  (2011), filme de Roman Polanski baseado na peça de mesmo nome da francesa Yasmina Reza. Gradualmente, ao longo de mais de uma hora, o tom da conversa se modifica. Os bons modos do início começam a ceder lugar para a exasperação. O que antes era cordialidade (fingida) vira hostilidade. É incômodo, mas não surpreendente, testemunhar o abandono da camada de civilidade. Lá pelas tantas, depois de algumas doses de uísque, os quatro chegam à conclusão de que as pessoas fingem. A epifania autoriza condutas ainda mais agressivas. Os casais continuam a brigar entre si e um com o outro. Um dos homens critica o trabalho da mulher, interpretada por Jodie Foster, que prepara um livro sobre certos distúrbios na África. “Você ficará envergonhado da sua atitude niilista”, responde ela ao marido.

Grunberg & Turguêniev & Polanski

Em Tirza, romance do holandês Arnon Grunberg publicado pela Rádio Londres com tradução de Mariângela Guimarães, o protagonista Jörgen Hofmeester é mais um representante da mesma classe média retratada por Polanski. Morador de outra cidade cosmopolita, Amsterdã, Hofmeester é casado, tem duas filhas, trabalha como editor de ficção estrangeira, possui uma casa em um endereço nobre, um bom carro e uma conta na Suíça.

Detalhe algum, porém, resiste a um olhar atento. A mulher de Hofmeester some de tempos em tempos. As filhas o consideram algo insano e seu relacionamento com Tirza, a mais nova, é doentio. Como editor, não conseguiu revelar um autor de peso. As coisas não vão bem onde mora: para reforçar o orçamento doméstico, Hofmeester aluga o andar superior da casa e costuma entrar em conflito com os inquilinos. Graças a um investimento de alto risco, seu patrimônio na Suíça foi praticamente extinto. Enquanto sua vida desmorona, Hofmeester se aferra às aparências. Afinal, revela, “a gente é o que as pessoas pensam da gente”.

Tanto o cineasta quanto o escritor escolheram uma abordagem irônica da “eterna necessidade de parecer civilizado sob qualquer circunstância”, como diz o narrador de Grunberg. Nos dois casos, o disfarce está prestes a ruir. A diferença é que as consequências do desmoronamento dos personagens de Deus da carnificina são patéticas, enquanto as do colapso de Jörgen Hofmeester são infinitamente mais trágicas.

Tirza começa na festa de formatura da personagem-título. Jörgen Hofmeester tenta parecer um bom anfitrião ao mesmo tempo em que, entornando taças de vinho, rumina, com pouca ou nenhuma coerência, os erros e acertos que o levaram até aquele momento. A ele e à sua família, que segundo a célebre frase de Tolstói, escritor a quem venera, certamente é infeliz à sua maneira. As circunstâncias de suas vidas, da maneira como Hofmeester as concebe, estão prestes a mudar.

Poucos dias depois da festa, Tirza viajará por alguns países africanos com o namorado, sujeito que Hofmeester considera assustadoramente parecido com Mohamed Atta, um dos terroristas responsáveis pela queda do World Trade Center em 2001. Ibi, a filha mais velha, está cada vez mais distante do pai. Além disso, a mulher de Hofmeester retornou faz pouco de uma ausência prolongada, e a situação conjugal é incerta. O futuro do protagonista, como ele próprio define, parece “um deserto à sua frente”.

Ao repensar a própria trajetória, Jörgen Hofmeester, que “sempre queria compreender as coisas”, é incapaz de renunciar ao autoengano — o que o levaria a admitir e encarar um tipo de fracasso do qual, em algum nível, ele certamente suspeita. A fim de se proteger, o protagonista de Tirza segue supervalorizando as aparências. O pai zeloso. O profissional competente. O marido ideal. Com isso, até o amor de Hofmeester pela literatura parece superficial, ainda que haja algo de genuíno em sua admiração, possivelmente reservada à estética, pelos autores russos.

Sua bagagem de editor e leitor de ficção pouco ou nada contribui para o entendimento de si e dos outros, derrubando o mito tantas vezes repetido de que a cultura serviria para fortalecer a empatia e a tolerância. No fundo, Hofmeester só se interessa por aquilo que é capaz de afetar sua imagem de homem de sucesso. Nada além do próprio umbigo desperta sua atenção. Como muitos cidadãos do primeiro mundo, tem uma visão estereotipada e cruel da África. Quando pensa no namorado da filha, diz que aceitaria “um negro, um viciado, até um vietnamita, […] mas não um terrorista”, sem se dar conta das associações absurdas que acaba de fazer. Em dado momento, Hofmeester se justifica dizendo que não é conservador, mas “realista e prático”.

No filme de Polanski, os dois casais parecem concordar quanto à necessidade de oferecer uma boa formação cultural para os filhos — é o que prega, em dado momento, a personagem de Jodie Foster. Contudo, assim como a experiência de Hofmeester com a ficção não o torna um homem melhor, também em Deus da carnificina a arte não opera milagres. É, afinal, um acidente envolvendo um livro sobre o pintor Oskar Kokoschka, justamente a motivação para a conversa a respeito da importância da cultura na educação das crianças, que precipita uma importante mudança na interação do quarteto. É nesse ponto que a cortesia começa a descambar para a hostilidade. O entendimento parece cada vez mais distante.

O caso é que os pais preocupados de Deus da carnificina não percebem que os filhos são capazes de resolver os próprios conflitos. Porém, se no filme de Roman Polanski a reflexão sobre a paternidade é apenas uma sugestão, podendo passar despercebida, em Tirza o tema é incontornável. “Quando ficou claro que [Hofmeester] não poderia se destacar em nada, optou pela paternidade”, escreve Arnon Grunberg. As expectativas irreais que o pai nutre em relação à caçula são uma fonte de tensão para ambos.

Quando Tirza, incomodada com a pressão excessiva, passa a sofrer com um transtorno alimentar, o profissional consultado por Jörgen Hofmeester revela que a garota desenvolveu “a doença da classe média branca”. Lá pelas tantas, Hofmeester deduz (não sem certa razão) que é ele próprio a doença da classe média branca. É evidente que Arnon Grunberg recorre a uma caricatura radical para criticar o fingimento, o isolamento e a insensibilidade que afetam uma parcela significativa da população — incluindo a que se diz instruída —, mas funciona.

Para reforçar o estereótipo, Hofmeester, como o personagem não se cansa de afirmar, tentou “matar o amor”. “Deus já tinha sido declarado morto. O progresso também. A civilização. A democracia, idem. […] Eu declarei a morte do amor”, diz Jörgen Hofmeester a uma colega de Tirza. Em seguida, o protagonista esclarece que seu projeto “devia se chamar a morte da compaixão”. Hofmeester diz não acreditar na compaixão; desprezar a compaixão. Poderia ser considerado um niilista?

Não exatamente. Jörgen Hofmeester é um personagem complexo que se contradiz do início ao fim do livro. Quando lê Dostoiévski para uma Tirza adolescente, salienta que “nunca é cedo demais para se iniciar numa certa dose de niilismo”. Segundo Hofmeester, “a invulnerabilidade é uma virtude”. Para ele, quem não crê em nada é invulnerável. “Está acima de todos, está acima de si mesmo”, diz. Empenhado em construir uma vida de aparências, uma aldeia de Potemkin, é claro que Hofmeester é vulnerável. Extremamente vulnerável.

É curioso como Hofmeester encarna caraterísticas das duas gerações de personagens de Pais e filhos, o clássico de Ivan Turguêniev que difundiu o conceito de “niilismo”. Como Bazárov e Arkádi, os mais jovens, ele se diz um niilista — ainda que a definição tenha mudado um tantinho de lá para cá. A exemplo de Nikolai e Pável, por outro lado, os irmãos da geração mais velha, ele acredita ser uma “carta fora do baralho”.

Num dado momento, Hofmeester sente uma “tristeza calma, leve”, similar à que Nikolai Petróvitch experimenta no jardim de sua propriedade quando se dá conta de que os melhores momentos de sua vida ficaram para trás. Hofmeester se parece com a dupla mais experiente de Turguêniev também no desejo de transmitir um conhecimento do qual as filhas desdenham. “Descobre-se que tudo não passa de tolice, que as pessoas capazes não estudam mais essas ninharias e que você, pelo que dizem, é um palerma ultrapassado”, diz Nikolai Petróvitch (em tradução de Rubens Figueiredo), mas bem poderia ser Jörgen Hofmeester.

A oscilação do protagonista de Tirza é uma boa resposta a um mundo que ficou ainda mais complexo depois da publicação de Pais e filhos em 1862. Hofmeester, por exemplo, acredita que liberdade é dinheiro, “e se o dinheiro não pode comprar a liberdade, é simplesmente porque não é dinheiro suficiente”. Naquilo em que ele vê liberdade, Tirza e Ibi “enxergam uma conspiração capitalista”.

Independentemente da fachada escolhida, sugerem Grunberg e Polanski, atuamos constantemente. Alguns mais, outros menos. Sem certa dose de fingimento — de autoengano, de cegueira voluntária —, não teríamos, de fato, a menor esperança de atravessar os dias. E não há garantia alguma. Bazárov, o niilista de Pais e filhos, observa que os homens “domesticam seus sistemas nervosos até um estado de irritação”, o que, em algum ponto, romperia “o equilíbrio entre os pratos da balança”. É o que acontece em Tirza e Deus da carnificina.

Mesmo a personagem do filme interpretada por Jodie Foster — supostamente dotada de aguda consciência social — construiu uma persona que se pretende escrupulosa, mas que está muito distante do ideal que ela mesma forjou. No fim das contas, considerando o que entregam o escritor e o cineasta, há duas formas de encarar a questão. Se Polanski critica abertamente o falso moralismo, Grunberg parece mais interessado em expor o cinismo de determinada parcela da classe média, que sequer tenta simular alguma empatia. Uma classe média que rejeita “os viciados”, mas recorre a uma boa garrafa de vinho ou uísque quando surgem os primeiros sinais de um conflito. No fundo, é possível que sejam faces diferentes da mesma coisa. Tim-tim.

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