O tempo do luto é outro

Colunistas

27.01.16

“Vamos falar sobre o luto”, em vamosfalarsobreoluto.com.br, é um espaço que merece atenção na internet brasileira, dada a nossa dificuldade cultural de falar sobre a morte. Carrega um paradoxo talvez incontornável, porque falar sobre o luto será sempre também falar sobre a vida que fica, continua, sobrevive, permanece. Se, como me disse um médico e amigo, é preciso passar pelo luto,  se o luto é uma experiência inevitável, então é também inevitável aprender a falar sobre ele – assim como precisamos aprender a falar sobre a morte, como nos encontros promovidos pelo Death Cafe em Londres –, mas para isso me parece que devemos também falar sobre o tempo.

A velocidade da vida contemporânea rima perfeitamente com seu imperativo de felicidade a qualquer custo, tema tão bem trabalhado nas pesquisas de João Freire Filho, organizador de Ser feliz hoje, livro no qual discute, entre inúmeros outros aspectos, como o imperativo da felicidade nos embrutece. Manter-nos funcionando como máquinas bem azeitadas exige também a manutenção de um certo ritmo, a partir do qual perde-se o tempo da delicadeza.

Uma das características do luto é quebrar esse ritmo maquínico e, de certa forma, mostrar seu absurdo. O tempo do luto é também a indicação do tempo em que chegará a nossa própria morte. Se há verdade na ideia de que toda angústia é angústia de morte, falar sobre o luto é conversar com a angústia, a partir dela, e deixar existir em nossas vidas a tristeza das faltas. Há saudades, lacunas, tristezas, sentimentos de perda e de vazio, que a morte de alguém muito amado exacerba, mas esses buracos que nos são constitutivos – no começo, há falta – estão cada vez mais sendo encobertos pelo necessidade de manter o giro do tempo rodando em ritmo acelerado, violento, virulento.

Quando escrevi sobre as exigências de flexibilidade do capitalismo tardio, um dos aspectos que sublinhei foi a constatação do sociólogo espanhol Manuel Castells, para quem o tempo deixou de ser “linear, irreversível, mensurável e previsível”, produzindo uma experiência de eterno “presente”. Não acho que havia nada de errado com o meu tempo quando ele era linear e, sobretudo, previsível. Embora tente me adaptar aos “novos tempos”, também gosto da ideia de resistir a suas exigências, de dizer não à obrigação de produtividade, de resultados, de eficiência, cujos valores contaminam tanto e a tal ponto os processos pessoais que contaminam até o tempo do luto.  Sofra rápido, porque a vida continua, é um dos clichês do luto contemporâneo.

Penso sobretudo que o tempo do luto é necessariamente marcado pela presença do passado, ou a isso que se dá o nome de saudade. Para que a experiência de “eterno presente” nos mantenha funcionando segundo os imperativos da felicidade e da performance, é preciso não passar pelo tempo do luto. Falar, conversar, trocar experiências, dizer como se sente em relação a quem partiu, contar histórias, lembrar e até esquecer, tudo isso faz parte do tempo do luto, que não pode ser encaixado em qualquer normatividade. Em um mundo que pretende definir o vinho certo, a comida certa, a cerveja certa, a roupa certa, a decoração certa, o lazer certo, na hora certa, para o lugar certo, fica difícil dar tempo ao luto, porque não há o “tempo certo” do luto.

No clássico Luto e melancolia, Freud observa que é “digno de nota que nunca nos ocorre considerar o luto um estado patológico, nem encaminhá-lo para tratamento médico, embora ele acarrete graves desvios da conduta normal da vida. Confiamos que será superado depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial perturbá-lo”. Quando fala em “depois de algum tempo”, deixa (propositalmente) em aberto qual é a medida desse tempo.  No site Vamos Falar Sobre O Luto, há um relato marcante de um pai que perdeu a filha e passou um ano se reinventando.

Na prática, todo luto implica também o trabalho de encerrar a existência civil de quem morreu – e mesmo neste aspecto jurídico mais básico, o prazo para abertura de um inventário é de 60 dias. Até mesmo o imperativo da lei reconhece que há um tempo do luto. A tramitação do fim de uma vida civil torna concreto o que o filósofo Jacques Derrida escreveu sobre a morte de uma pessoa querida: a cada vez, o fim do mundo. Providências administrativas nos evidenciam que cada morte representa o fim de um mundo, do mundo compartilhado com aquele que partiu: “A morte declara a cada vez o fim do mundo em sua totalidade, o fim de todo mundo possível, e a cada vez o fim do mundo como totalidade única, portanto insubstituível e portanto infinita”. Essa morte, como toda morte, tem um tempo. Vamos falar sobre o luto, e para isso podemos começar reconhecendo que o tempo do luto é outro.

 

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