O que me interessa

Literatura

08.11.11

O texto abaixo, assinado pela cenógrafa e diretora teatral Daniela Thomas, relata sua experiência de dirigir os atores Giulia Gam e Paulo José em uma leitura de poemas de Carlos Drummond de Andrade, que se deu no IMS-RJ, no dia 31 de outubro – data que o Instituto Moreira Salles e parceiros consagraram como o Dia de Drummond.

“O que me interessa”. Essa é a frase onipresente na narrativa do artista contemporâneo. Na maior parte das vezes “o que me interessa” tem maior alcance do que a obra mesma – aquilo que o artista sucede em materializar ao fim do que lhe interessa ponderar. Esse procedimento de eleição de afetos se tornou central ao processo de criação do artista, acima de qualquer outra escolha. “O que me interessa” pode ser uma coisa à toa, um gesto inútil. Quanto menos relevante, aliás, mais interessante. Como se de repente um cirurgião, no meio de uma operação, passasse a repetir um mesmo gesto ad nauseum, retirando dele todo sentido médico e impregnando-o de algo entre a loucura e a poesia?

Isso ia me passando pela cabeça, enquanto tentava dirigir o ensaio da leitura de poemas de Drummond, no IMS do Rio, para comemorar o Dia D, aniversário do poeta. O filó branco recém-esticado, lindo, perfeito entre palco e plateia do pequeno teatro – os poemas a serem projetados nesse mesmo filó (no ar, portanto, quando o efeito se completasse com a escuridão e o artifício da luz cênica) devidamente organizados no computador e lindamente layoutados pelo Murilo e o Fê, e, no palco, alinhados, múltiplos de dois: duas cadeiras, duas estantes de música, dois apoios de microfones e dois dos atores maiores da nossa constelação: Paulo José e Giulia Gam.

Eu deveria orquestrar tudo isso. Para isso fora convocada. Giulia me perguntava se deveria sentar-se ou permanecer de pé. E eu silenciava e silenciava um pouco mais.

Por que sentar? Levantar-se? Andar da direita para a esquerda? Por que isso não me interessa?

Pedi que fizessem o que lhes desse na telha. Giulia riu. Assim vou canastrar, falou. Eu respondi: não acredito. Acho que você sabe a medida. Tenta, pedi.

E assim fomos, por umas duas horas, Paulo e Giulia se aproximando dos cinco poemas que o Flavio Moura e o Eucanaã Ferraz tinham escolhido para esse recital.

O que um ia ler, o que o outro, como, as reflexões sobre as frases que iam sendo projetadas no ar, o jogral evidenciando-se quase que por acaso, as risadas imensas da Giulia, as considerações do Paulo sobre as origens dos poemas, sobre as biografias dos personagens iam se somando, se multiplicando, se potencializando em interesse vital.

Um poema revelou-se intransponível ao Paulo. Um dos raríssimos poemas de Drummond que Paulo não sabe de cor (“A máquina do mundo”) “Não sei a exegese do poema”, disse, angustiado. Saiu da prisão do palco e veio andar pela plateia, bengala em punho, ler o poema que ia sendo projetado em letras imensas no filó. Embate de titãs: o ator luta para alcançar a expressão do poema que o poeta realizou plenamente. Saem faíscas da ponta da bengala na direção das palavras, de tão elétrico o embate.

Paulo estava com dificuldade para mover-se entre degraus e poltronas. O que se desenhava era temeroso: Paulo subindo e descendo pela plateia na escuridão da cena. Propus então que ele voltasse ao palco e nós projetaríamos o poema invertido: só para sua leitura. Paulo o decifraria para nós. Ele volta ao palco e fazemos o prometido. “A terrible beauty is born”, do poema de Yates: Paulo lê as palavras assim que elas nascem da escuridão, e, de surpresa, lê algumas de frente para trás, num gesto de empatia com nossa angústia, sofridos que estamos com a falta de sentido das palavras invertidas no ar.

A essa altura estou numa movimentação ainda mais frenética que a de Paulo pela plateia. O que me interessa, penso, o que me interessa – me dou conta – é exatamente esse lugar, esse momento onde o foco único do ser é a busca da fugidia expressão EXATA – e o balé metafísico que advém: a chegada, a quase chegada, o retorno, a insistência. Isso me interessa infinitamente mais do que o resultado final, o produto, a obra.

Decido não continuar o ensaio. Vamos parar por aqui. Vamos tentar não fixar demais as formas, para não perder isso “que me interessa” e que desejo ardentemente dividir com a plateia.

As consequências da minha decisão são imprevisíveis e extraordinárias. Tal qual o cirurgião do primeiro parágrafo, Paulo José surpreendeu-nos a todos, largando-se pelos poemas de Drummond como um trem descarrilado, numa performance que me jogou de volta a uma noite com John Cage no final dos anos 70. Giulia, de início consternada, abandonou-se à viagem irreversível com gosto. De certo a memória das tertúlias que promovia em São Paulo com poetas jovens e não tão jovens (Haroldo de Campos era habitué), nos anos oitenta, a embalaram na aventura. O público foi levado a lugares insuspeitos, fascinados, apavorados, extasiados. Muitos não aguentaram a leitura impromptu que se seguiu aos poemas projetados, com Paulo sentado – sua velha antologia de Drummond no colo – passando as páginas lentamente, e lendo alto um, agora outro e mais outro poema. A hora de fechar a casa já passada, o público minguando, a chuva estiando e os poucos que resistiram foram brindados com a performance verdadeiramente joyciana (afinal o Dia D é inspirado no Bloomsday) de pura busca, de não chegada.

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