Ficção sem teoria – quatro perguntas para Tatiana Salem Levy

Quatro perguntas

09.11.11

Em 2007, aos 28 anos, a escritora brasileira nascida em Lisboa Tatiana Salem Levy estreou como romancista com o elogiado A chave de casa. Um ano depois, o livro ganharia o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autor estreante. Com a narrativa concentrada em dilemas familiares, Tatiana angariou críticas positivas e se firmou entre os mais talentosos ficcionistas brasileiros da nova geração.
Quatro anos depois, a autora retorna às prateleiras com Dois rios (Record), seu segundo romance. A família, de certa maneira, permanece o foco de sua narrativa, que tem lampejos de Virginia Woolf, Henry James e Clarice Lispector. Desta vez, para contar a história de dois irmãos que se apaixonam por uma mesma mulher. Em entrevista ao Blog do IMS, Tatiana falou sobre processo criativo, geração literária e o peso da academia na sua literatura.

Há um intervalo de quatro anos entre o seu primeiro e o segundo romance. Quais foram as diferenças marcantes entre o processo de criação de um e outro?
Cada livro tem seu próprio processo. Claro que escrever um livro aos 26 não é a mesma coisa que escrever um livro aos 31. São diferentes momentos da vida e, sobretudo, são histórias diferentes a serem contadas. Cada livro tem suas exigências. Mas existe um ponto comum no processo de criação desses romances: os dois foram verdadeiras travessias. Escrever, para mim, é buscar um sentido – mesmo que eu não o encontre. E a busca pelo sentido constitui uma travessia árdua. Prazerosa também, é claro, mas difícil. Requer, sobretudo, tempo. Escrever um romance é passar por diferentes ciclos, descobrir caminhos, se perder. Tudo o que escrevo tem a ver, de alguma forma, com a vida. Em A chave de casa, esse elo era mais evidente, porque se tratava de um romance de autoficção. Em Dois rios, nenhum personagem se confunde comigo, mas todos têm alguma coisa minha, ou daquilo que vivi. Parece-me impossível passar tanto tempo com os personagens, e eles não roubarem alguma coisa de mim. E vice-versa.
A chave de casa tratava com muita delicadeza de um drama familiar. Dois rios fala de irmãos que se envolvem com a mesma mulher, de certa forma também um drama familiar. A que se deve essa afeição a temas assim?
Acho que esse tema está tão arraigado a mim, que nem me dou conta que estou falando dele novamente. Outro dia, uma amiga que leu o livro comentou: seus personagens sempre têm mãe, avó, avô… Engraçado, porque é tão natural, que nem sei… Deve ser porque minha família é muito pequena, então fico querendo explorar relacionamentos que eu nunca tive ou não tenho mais. E há também a questão da herança, muito presente no que escrevo. A necessidade de escolher o que levamos do passado e da família, e o que deixamos para trás. Meus romances têm essa obsessão pela trajetória de escolha, de liberação, de buscar um sentido para o silêncio entre as gerações.

Em uma discussão recente promovida pelo IMS sobre literatura contemporânea brasileira, discutiu-se o conceito de geração, estilo e identidade. Você se vê, de alguma forma, encaixada em uma geração de autores brasileiros unidos por estilo ou abordagem de temas comuns?
A minha falta de vontade de responder essa pergunta já é, num certo sentido, uma resposta. Não existe mais geração como houve nos anos 30, ou nos anos 60, por exemplo. Não existe um ideal em comum, uma troca intensiva de ideias sobre o que fazer na literatura, muito menos manifestos. Claro que um olhar externo pode sempre encontrar várias características em comum nos autores de hoje – a narrativa fragmentada, a escrita violenta de um lado, a introspectiva de outro. Mas isso é de fora. Não há um ponto de partida em comum, a não ser a própria realidade, o próprio tempo em que vivemos. Há questões que se repetem, seja na forma, seja no conteúdo, mas isso se deve ao simples fato de vivermos uma mesma época. Em Dois rios, eu senti uma necessidade muito grande em retomar uma vivência que não existe mais nas grandes cidades. Fala-se frequentemente em economizar tempo e, no final, temos tudo menos tempo. A ideia de que a tecnologia nos faz poupar tempo é falsa. Porque, no fim, não sobra tempo para se perder, para viver o mundo, o real. No Quarteto de Alexandria, Lauwrence Durrell fala em determinada altura do hábito de se parar os relógios quando se recebe alguém querido em casa, para não contar as horas. Acho que se a literatura tem alguma função hoje em dia, algum poder de resistência, é no sentido de proporcionar ao leitor essa experiência com o tempo. Nesse sentido, acho que existe hoje uma espécie de retorno a um mundo antigo, que a minha geração conheceu e do qual começa a sentir falta. Eu vejo isso na Carola Saavedra, no João Carrascoza, entre outros. E vejo também que essa mesma tendência está surgindo no nosso cinema.

No que a sua origem acadêmica foi determinante para a literatura que você produz?
Na preocupação com o próprio fazer literário, certa obsessão pela estrutura. Mas acho que Dois rios é mais distante da academia do que A chave de casa, porque eu já estava fora dela quando o escrevi. Claro que os ecos ficam, mas acho que o mais importante que trago da universidade é a bagagem de leitura que ela me proporcionou. Afinal, minha vida foi toda dedicada à literatura, e isso me permitiu “perder” todo o meu tempo com ela. Mas não acho que a minha ficção tenha um diálogo explícito com a teoria, como encontramos em outros autores. Talvez por isso eu tenha deixado a universidade, porque me interesso muito mais pela ficção do que pela teoria.

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