O exercício do caos, que entra hoje em cartaz em sete capitais brasileiras, é o que se pode chamar, sem medo de errar, de “filme de autor”. Por qualquer critério.
Do ponto de vista teórico ou abstrato, é de autor porque traduz em narrativa audiovisual uma visão pessoal do cinema e da vida. Mas é de autor também num sentido muito concreto: Frederico Machado escreveu, dirigiu, produziu e fez a fotografia do filme.
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Definido por seu autor como um “suspense existencialista”, O exercício do caos tem um entrecho exíguo: no interior do nordeste (Maranhão, mas isso só sabemos por informação extrafílmica), um homem de meia-idade (Auro Juriciê) e suas três filhas trabalham num roçado e engenho de mandioca, sob o domínio de um capataz mal-encarado (Di Ramalho) e de um proprietário ausente. Pelos escassos diálogos, ficamos sabendo que a mãe das meninas (Elza Gonçalves) desapareceu anos atrás, talvez sequestrada por um mítico forasteiro vestido de branco. Ela, a mãe, aparece diariamente à filha mais nova, como fantasma ou projeção.
Entre o real e o fantástico
Mais do que o enredo, porém, o que importa é a atmosfera criada, entre o real e o fantástico, naquele fim de mundo perdido no tempo. O que não é dito, o que está fora do quadro e do tempo da narração é tão importante quanto o que se mostra e se diz.
A encenação é de uma austeridade e um rigor quase ascéticos, e não por acaso o filme é dedicado a Robert Bresson. Mas ao contrário do mestre francês, que evitava toda música não diegética, ou seja, que não fosse produzida em cena, a música de Béla Bartok e Alfred Schnittke é essencial para arrancar o filme da descrição naturalista e alçá-lo à esfera do mistério e do mito. Há algo de Tarkóvski na gravidade metafísica de certos gestos e enquadramentos, no entanto sem nenhuma afetação ou pose.
A fotografia conduz com muita habilidade o contraste entre, por um lado, o mundo concreto e cotidiano da família, circunscrito a uma gama de cores não muito distantes da terra – o amarelo da iluminação elétrica precária, o dourado da luz cambiante do fogo, o marrom escuro da mandioca, o ocre das paredes, o moreno da pele das meninas e do pai – e, por outro, o espaço luminoso da mata e do lago de águas translúcidas. A passagem entre um território e outro equivale à travessia do real ao imaginário, da opacidade à transparência.
Desastres humanos
Mas ainda estamos distantes de uma descrição minimamente fiel desse filme em que pouco é dito e muito é sugerido. A ênfase na pele e na respiração das personagens, a recorrência de instrumentos cortantes em ação, tudo sugere a iminência do sexo e da morte, ambos sempre à espreita em cada fotograma.
Esse drama em que pouca coisa acontece diante da câmera é atravessado por todos os desastres humanos possíveis: incesto, assassinato, adultério, suicídio. No “real” ou no imaginário, quem vai saber? No cinema, e é isso que importa.