Quanto melhor o filme, quanto “mais cinematográfico” ele for, mais vã será a tentativa de reduzi-lo a uma sinopse. Tentar traduzir em palavras um Blow-up ou um Terra em transe é como pretender reproduzir com uma caneta Bic uma tela de Leonardo, ou dar conta de uma sinfonia de Beethoven cantarolando sua melodia.
Pois bem. Praia do futuro, de Karim Aïnouz, é um desses filmes cujo entrecho serve apenas como esboço, como planta (no sentido arquitetônico) a partir da qual se ergue sua sutil construção.
Nessa história em três atos de um salva-vidas de Fortaleza (Wagner Moura) que vai a Berlim atrás de seu amante alemão (Clemens Schick), o que enche a tela e impregna os sentidos do espectador são as sensações contraditórias de isolamento e busca de contato, de potência e vulnerabilidade, afeto e incomunicabilidade.
Deslocamento e mergulho
Num sentido ainda mais essencial, quase gráfico, o filme pode ser visto como a conjugação de dois movimentos: um horizontal, de deslocamento geográfico, e outro vertical, de mergulho interior. Já na primeira sequência, empolgante e sem palavras, essas duas coordenadas espaciais e dramáticas aparecem com força: dois amigos atravessam de moto uma extensão de dunas, depois mergulham no mar e um deles se afoga, apesar da tentativa desesperada de salvamento.
É desse vazio, dessa lacuna – literal, já que o corpo do motoqueiro morto não é encontrado – que se origina todo o movimento do protagonista. É sob o signo da ausência e da incompletude que se dará a sua trajetória.
Em vários momentos se expressa lindamente essa qualidade um tanto espectral do personagem: quando ele caminha sozinho por um desolado parque berlinense, de árvores sem folhas; quando conversa com uma atendente de bar, sem que um compreenda o outro; quando entra numa sala de aula vazia e tenta decifrar o que está escrito num quadro, sob a bronca incompreensível de um vigia.
Duas imagens fortíssimas e contrastantes ficam impregnadas na retina e, a meu ver, balizam formalmente o filme: o vertiginoso aquário vertical em que o protagonista é reencontrado pelo irmão (Jesuíta Barbosa) em Berlim; e a “praia sem mar” que se estende a perder de vista na névoa, horizontalidade pura em que os irmãos desgarrados finalmente se reconciliam.
Arquitetura em movimento
Rotular Praia do futuro de “filme gay”, além de empobrecer o seu alcance, também distorce o seu sentido, pois, apesar de prevalecerem nele de modo franco e corajoso as relações homoeróticas, o vínculo fundamental ali não é entre o salva-vidas Donato e seu namorado alemão, mas sim entre Donato e o irmão caçula.
Aquaman e Speed Racer, apelidos que eles dão um ao outro, inspirados nos desenhos animados, não deixam de ser uma forma de sintetizar as duas linhas mestras do filme – o deslocamento e o mergulho, a busca de contato e a introspecção, o horizonte e as profundezas.
Há em Praia do futuro algo do Antonioni de A aventura e de O passageiro, Profissão: repórter (atenção: isto não é uma comparação, só uma referência), não tanto pela perambulação angustiada dos personagens, mas principalmente pela configuração do espaço físico como elemento dramático. Nessa arquitetura em movimento não há um único enquadramento frouxo, desnecessário ou meramente ornamental. O ambiente não é mero cenário onde se desenrola o drama: ele é o drama. A isso damos o nome de cinema.
Humberto Mauro
Começa na próxima quinta-feira (22 de maio) em Belo Horizonte uma mostra preciosa para quem se interessa por cinema brasileiro: uma grande retrospectiva da obra do pioneiro Humberto Mauro (1897-1983), aquele que disse que “cinema é cachoeira”, uma das mais belas definições dessa arte que combina movimento, potência, beleza, risco e descoberta.
Na programação, os sete longas-metragens preservados do cineasta (dos quinze que ele dirigiu) e vários dos mais de trezentos documentários curtos que realizou para o Instituto Nacional do Cinema Educativo, além de produções de outros cineastas das quais Humberto Mauro participou, como Anchieta, José do Brasil (Paulo Cezar Saraceni, 1977) e Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), para os quais escreveu os diálogos em tupi-guarani, A noiva da cidade (Alex Viany, 1978), que ele roteirizou, e Memória de Helena (David Neves, 1969), em que aparece como ator.
O gran finale do evento será a exibição, nos dias 10 e 11 de junho, do clássico Ganga bruta (1933), com acompanhamento ao vivo da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, no grande teatro do Palácio das Artes. Em tempo: os filmes da mostra serão exibidos, apropriadamente, no Cine Humberto Mauro, no mesmo Palácio das Artes.