Mostra dedicada ao cineasta chinês Wang Bing no IMS-RJ exibirá os filmes A oeste dos trilhos,Memórias de uma chinesa,Três irmãs, Até que a loucura nos separe, entre outros. A mostra começa em 16 de maio.
Desde as primeiras projeções, em janeiro de 2003, no Festival de Rotterdam, A oeste dos trilhos despertou uma surpresa duplamente agradável. Essa extensa análise das transformações sociais e econômicas da China contemporânea é feita a partir do registro da decadência da grande indústria de metais pesados de Tie Xi Qu, distrito vizinho à cidade de Shenyang, no nordeste da China. Através da pequena história dos trabalhadores gradativamente marginalizados com o desaparecimento ou a transferência das fábricas, o filme nos leva a refletir sobre a grande história que se desenrola por trás dessas trajetória individuais.
São nove horas divididas em três partes: Ferrugem, Vestígios e Trilhos. O filme percorre os espaços vazios das fábricas, acompanha o tempo de espera dos mais jovens e dos mais idosos em torno da fábrica e, ao fim, a demolição, quando os operários se aglutinam entre os escombros em busca de peças para vender como ferro-velho para fábricas ainda em funcionamento. E bem aí, dentro dessa surpresa inicial pela extensão do documento, uma outra, e inseparável da primeira, a descoberta de um modo de filmar que propõe um outro realismo cinematográfico. Um modo de filmar que, ao mesmo tempo, se serve dos novos meios técnicos, a exemplo da câmera digital, mas que não repete os habituais efeitos de saturação de luz e cor, a agilidade e o hiper-realismo da imagem em alta definição. A oeste dos trilhos olha sem pressa.
Nenhuma narração, nenhum comentário musical, nenhuma fonte de luz além da existente no interior das fábricas. Imensos galpões quase vazios funcionam ainda que precariamente. Quartos e cozinhas das casas sem aquecimento onde trabalhadores, em meio a um inverno rigoroso, esperam o governo decidir seus destinos. As conversas são filmadas com a câmera em ângulo baixo. Muitas vezes, a câmera pequena é colocada sobre a mesa, ao lado de uma garrafa térmica, entre alguns trapos, como um objeto qualquer da casa. Esses gestos simples da imagem reafirmam a vontade que impulsiona o filme: colocar-se entre os trabalhadores do outrora grande centro de indústrias de metais pesados de Tie Xi Qu, acompanhar suas falas e seus silêncios, suas idas e vindas em busca de trabalho; servir-se da câmera como uma ferramenta idêntica a qualquer outra usada pelos operários antes de serem empurrados para a margem com o fechamento das fábricas.
“A fábrica é a protagonista de meu filme”, diz o diretor. Mais precisamente, a fábrica transformada em uma imensa ruína em consequência das transformações econômicas da China, o desaparecimento da fábrica como ferrugem, vestígio, trilho para o estudo do passado recente. “Pertenço a uma geração mais jovem, não conheço as razões e os sentimentos das pessoas mais velhas. Com A oeste dos trilhos queria, ao mesmo tempo, discutir algumas questões de nossa história e outras de meu processo criativo. Basicamente, segui meus instintos, não estabeleci previamente uma linha de abordagem, não organizei racionalmente uma estratégia cinematográfica. Quando terminei o filme, senti que um período da minha vida tinha acabado. Um novo período se inaugurava. Comecei a pensar como poderia desenvolver uma abordagem mais estruturada para o que eu queria fazer no cinema: discutir a experiência da geração anterior. De repente, nos descobrimos com 30 anos de vida – entre os 30 e os 40 – e começamos a perceber a discrepância entre o que nos foi ensinado e a realidade. Nos ensinaram a viver uma irrealidade. Essa foi uma motivação. Uma outra: hoje, na China, as pessoas não querem olhar para o passado. Só pensam no futuro. Só pensam no que querem ser amanhã. O ontem é irrelevante. O hoje, daqui a pouco, também vai-se tornar irrelevante. Se esse pensamento persistir, será muito problemático. Esse tipo de vida no vazio, uma ilusão suspensa no espaço, sem qualquer ligação com a terra, cria em mim uma sensação desagradável, um desconforto psicológico difícil de descrever”, explica o diretor.
Um filme é um processo difícil e doloroso, muito cansativo e difícil – prossegue Bing. “Quando A oeste dos trilhos terminou, não senti algo como: ‘Ótimo, estou feliz e satisfeito’. Fiz o filme para contar uma história. E ao contar essa história, eu me torno parte dela. Contadores de histórias, os artistas habitualmente imaginam ter uma certa influência sobre o público. Pessoalmente, não quero exercer essa influência – isso implicaria em adotar uma determinada noção de imparcialidade e de verdade. Eu tenho dificuldade de situar o meu trabalho. Não importa como um filme conta uma história, é muito difícil dizer que num filme apresentamos a verdade. Na vida, há momentos em que as coisas são difíceis de entender. Não sabemos lidar com elas. Todo cineasta enfrenta a dificuldade de ser imparcial durante o processo criativo – enfrenta até mesmo a dificuldade de ser fiel a si mesmo. O que é muito difícil. É algo difícil de alcançar em sua vida. Eu também enfrento essa dificuldade. Afinal, qual o meu papel quando filmo um documentário? Às vezes você pode confiar em sua capacidade de compreender a verdade, mas às vezes você se sente perdido e acha que jamais vai alcançá-la. Com relação a isso, estou plenamente consciente de que o meu filme é um intermediário entre a minha vida e a vida do meu interlocutor. O resultado dessa interação é que pode ser considerada a verdade de um documentário”.
Qual seria a parte de verdade na feitura de um filme? Para Wang Bing, “o empreendimento é por vezes duvidoso, noutras ele faz sentido. Um filme traz mesmo uma certa porção de verdade. Se podemos dizer que existe um significado num documentário, acho que ele não está na história contada, mas num certo momento do documentário, num instante preciso em que se transmite algo. Um lugar, um instante na vida de alguém. São, digamos, dez, cinco minutos, não importa. Esse momento, quando ele se apresenta e tomamos consciência dele, é determinante. Esse momento não é a história, mas a história pequena. A história pequena é o que existe de mais bonito em um documentário.”
Seu segundo filme também prossegue discutindo questões mais gerais da China e outras do processo criativo do diretor. Fengming: memórias de uma chinesa é uma longa conversa filmada também por uma câmera que olha de baixo para cima e não recorre a qualquer fonte de luz além da existente no local. Daí em diante, Bing produziu uma obra de ficção e dez documentários de curta e de longa-metragem empenhados em discutir a experiência da geração anterior e em perguntar por que pessoas de hoje não querem olhar para o passado. São filmes empenhados em buscar na história pequena o momento determinante em que um documentário transmite algo.
Wang Bing pertence à chamada Sexta Geração de diretores chineses (a sexta geração de diretores formados pela Academia de Cinema de Pequim). A oeste dos trilhos (Tie Xi Qu, 2003, 551′), filmado entre 1991 e 2001, foi seu primeiro filme. Em seguida vieram Fengming: memórias de uma chinesa (He Fengming, 2007, 186′); Fábrica de brutalidade, um dos seis episódios de O estado do mundo (2007, 105′. Os outros cinco episódios foram dirigidos por Aiysha Abraham, Chantal Akerman, Pedro Costa, Vicente Ferraz e Apichatpong Weerasethakul); Petróleo (Caiyou Riji, 2008, 840′); Xi Yanh Tang (2009, 18′); Dinheiro de carvão (Tong Dao, 2009, 53′); O homem sem nome (Wu ming zhe, 2010, 92′); A vala (Jiabiangou, 2010, 112′); Três irmãs (San Zimei, 2012, 153′); Sozinho (Gudu, 2013, 89′); Venice 70: Future Reloaded (filme em 70 episódios com a participação, entre outros, de Júlio Bressane, Karim Ainouz, Isabel Coixet, Jean-Marie Straub, Walter Salles, Jia Zhangke e Edgar Reitz; 2013, 120′). Seu mais recente documentário é Até que a loucura nos separe (Feng ai, 2013. 227′).
José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.