O abismo prateado, novo filme de Karim Aïnouz, começa com as imagens sôfregas, fragmentadas, de um nadador solitário num mar noturno. O homem, a vastidão da natureza. Em seguida, esse personagem sai da água, está na praia, logo caminha trôpego e ainda seminu pelas ruas movimentadas de uma grande cidade. É Copacabana, Rio de Janeiro.
Esse trânsito do líquido ao concreto, da natureza à cultura, da solidão ao convívio urbano, do atemporal ao histórico, é um momento forte do cinema recente, e confirma o vigor sutil – se é possível o paradoxo – do diretor de Madame Satã e O céu de Suely.
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Há cineastas do contar e cineastas do mostrar. Os primeiros são os que se preocupam prioritariamente com o enredo, com a história a ser narrada. O filme é só um meio de expor ou ilustrar essa história preexistente. Os segundos apostam tudo, ou quase, na força das imagens para revelar e/ou criar um mundo que não existia previamente ao momento da filmagem.
Exemplos do primeiro time: Woody Allen, Ettore Scola, Jorge Furtado. Do segundo: Orson Welles, Stanley Kubrick, Rogério Sganzerla. Karim Aïnouz se filia, evidentemente, ao segundo grupo, ainda que seu cinema permaneça dentro dos marcos da ficção realista.
Melhor que a encomenda
Dentro da obra em progresso de Karim, O abismo prateado ocupa um lugar peculiar. Primeiro, por ser um filme de encomenda do produtor. Segundo, por ser inspirado numa canção – “Olhos nos olhos”, de Chico Buarque. Manter a marca pessoal e a liberdade de criação trabalhando sob essas duas constrições foi o desafio enfrentado com brio pelo diretor. O abismo é um filme potente e belo, ainda que irregular.
Seu entrecho cabe numa única linha: 24 horas na vida de uma mulher que acaba de ser abandonada pelo marido. É o que basta para o cineasta criar uma sinfonia (em geral dissonante) de sensações e atmosferas, cobrindo um arco que vai da desorientação ao apaziguamento, passando pelo desespero, pela ansiedade, pelo pânico, pelo vazio…
A primeira terça parte do filme, a meu ver, é a mais feliz, ao centrar seu foco no corpo dos personagens: primeiro no do marido, Djalma (Otto Jr., o homem que sai do mar), em seguida nos dois juntos na cama, por fim no da solitária Violeta (Alessandra Negrini). Ao saber-se abandonada, ela entra em choque com o mundo à sua volta, seja em seu consultório de dentista, sobre sua bicicleta entre carros hostis ou num barulhento prédio em construção. Um mundo em que tudo é aresta, quina, ruído, desvão, ameaça.
Penélope às avessas
No auge dessa deriva urbana, dessa desavença da protagonista com o ambiente, há uma cena curiosa, em que ela sai do canteiro de obras e entra num matagal vizinho, numa espécie de fuga animal sem motivo aparente – senão o de realizar em sentido contrário o trânsito do início do filme, entre a natureza e a cidade.
Aïnouz consegue, de resto, transformar uma história de paralisia afetiva num drama de deslocamento, bem ao seu gosto. Além de colocar em cena personagens desgarrados – como o pai e a filha que Violeta encontra na praia, já perto do final -, ele traça o périplo da protagonista por uma sucessão de lugares de passagem: prédio em construção, táxi, hotel, boate, aeroporto. É dessa dialética entre o movimento e a fixidez – já que no fundo a personagem não sai do mesmo lugar – que o filme extrai sua força e sua originalidade. Violeta é uma Penélope às avessas, que em vez de esperar o retorno do homem realiza, ela própria, a sua odisseia.
Laranja mecânica
Não pode passar batido o relançamento, em cópia nova, de uma obra-prima absoluta, Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, que estreia hoje no CineSesc, em São Paulo. Uma oportunidade única de ver ou rever num dos melhores cinemas da cidade uma obra que marcou época não só pelo tema – a violência sistemática do Estado versus a violência anárquica do indivíduo -, mas sobretudo pelo caráter visionário de suas imagens e sons. Mais do que a triste atualidade de seu assunto, é a beleza terrível de sua poética audiovisual que mantém esse filme mais vivo do que nunca. Aqui, como aperitivo, o trailer original: