São Jerônimo não é só protetor dos tradutores e das bibliotecárias. De vez em quando dá uma mãozinha também aos pesquisadores. Quando menos se espera, ele envia uma informação que dá todo o sentido a uma foto, um desenho, uma dedicatória ou um texto.
Não fosse uma conversa informal com Helena Pinheiro Lara Resende, viúva de Otto Lara Resende, que gosta de vir tomar um café comigo aqui no Instituto Moreira Salles, talvez nunca se soubesse que as três caricaturas de autoria de Millôr Fernandes, encontradas no arquivo de Otto, dizem respeito ao casamento do próprio Otto.
Tudo começou quando comentei com d. Helena que tinha visto uma boa foto de seu casamento.
“O Otto casou com o terno do Millôr”, disse ela, cuja memória prodigiosa muito tem contribuído para esclarecer dúvidas que surgem no arquivo do marido.
Em 1950, ano do casamento, Otto trabalhava freneticamente em alguns periódicos do Rio, cidade onde chegara em janeiro de 1946. Em quatro anos teve de alugar apartamento, firmar-se profissionalmente, encantar-se com o Rio de Janeiro, e, de quebra, encontrar a mulher com quem viveria por toda a vida.
Não espanta que, diante das responsabilidades que assumia, lhe tenha sido providencial a economia de uns bons cobres: em vez de comprar ou alugar um terno para a cerimônia, envergou, de graça, o de Millôr Fernandes. Devidamente paramentado, no dia 14 de abril de 1950 ele recebeu a noiva ao pé do altar do mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro.
Nem tão de graça como se pode pensar foi o empréstimo do terno. Otto sofreu tortura do amigo que, todo dia, durante uma semana, fazia deslizar por baixo da porta do apartamento 201 da rua Artur Araripe 63, Gávea, onde morava o noivo, um desenho ameaçador – conta Helena Lara Resende. Três desses desenhos foram encontrados no arquivo de Otto, sob a guarda do IMS desde 1994. Neles, como se vê, o cartunista faz contagem regressiva para a data do casamento:
O jornal carioca A Manhã, onde Otto trabalhava, noticiou o casamento na seção “Flagrantes nupciais”, em 23 de abril de 1950.
A julgar pela foto oficial, o terno de Millôr caiu muito bem em Otto. Elegante e depois de devidamente abençoado, ele desfilou na nave do mosteiro, levando pelo braço a noiva, com seu vestido de cinco metros de cauda. Diferentemente do noivo, o vestido de Helena Uchoa Pinheiro, como assinava antes de se tornar a senhora Lara Resende, fora confeccionado especialmente para ela, executando desenho feito por Alceu Pena. Sim, o Alceu Pena, autor das famosas garotas de O Cruzeiro.
Terno e cauda farfalharam pelos salões do apartamento de cobertura de três andares, na rua Assis Brasil, em Copacabana, onde moravam os pais da noiva, o engenheiro e político Israel Pinheiro, futuro governador de Minas Gerais, e a mulher, Coracy Uchoa Pinheiro, com os nove filhos. Ali a família recebeu os convidados para a festa.
As ameaças de Millôr foram em vão. Otto se encantou com o casamento, viveu sempre junto da mulher e dos quatro filhos e, sobre o assunto, não fez por menos: “Como estado civil, sou casado, casadíssimo, com a família toda. Muito familiar. Familioso. Familial. Gosto do convívio dos meus filhos. (…) Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar”, diria ele, certamente sem exageros.