Tudo o que pode ser dito do Ivan Lessa não chegou a ser dito pelo Ivan Lessa.
Roubei dele a ideia dessa frase, frase da abertura de seu texto sobre a morte do Millôr (há pouco mais de dois meses), e modifiquei um pouquinho para não pegar mal. Porque ele, Ivan, foi sempre elíptico demais, cifrado demais para, assim, de pronto, “dizer-se” como os mortos costumam se explicar pelo Google na burocracia dos obituários.
Não o conheci e o entrevistei pelo telefone, há muitos anos, quando lançou as crônicas Ivan vê o mundo, livro organizado pela Helena Carone, então sua companheira de redação da BBC. Me disse ele que, pouco antes de tocar o telefone, tinha recebido em casa CDs do Orlando Silva que havia encomendado na Revivendo. E me contou a história para mostrar como era sua relação com o Brasil, o que nunca esqueci (e certamente pioro muito citando de memória):
“O Brasil está sempre voltando para mim. Quando era criança, gostava de chutar a bola contra a arrebentação no Posto 5 e o mar devolvia a bola. O Brasil é assim, eu chuto e ele volta”.
Sempre me intrigou que Ivan vivesse num Rio de Janeiro imaginário, devidamente azedado (ou reforçado, vai saber) quando esteve aqui pela última vez em “vinte oito anos, seis meses e sete dias” (nas suas contas) para escrever “Eu conheço esse cara”, crônica-diário publicada no primeiro número da piauí .
A idade me fez entender melhor, no entanto, que a General Osório pode, sim, fazer esquina com a Charing Cross. E, também, entender melhor o Ivan Lessa.
Pois na primeira vez que o li, Os garotos da fuzarca, não pesquei nada ou quase nada. Adolescentes de classe média alta currando e assassinando uma empregada em Copacabana ou o culto da musa do esfíncter rosa era Rio de Janeiro de 1950 demais para um suburbano com vinte e pouquinhos anos nos anos 80.
Mas ali tinha algo.
Quando comecei a gostar de Frank Sinatra, um dos muitos anacronismos de minha deformação musical, fui parar no Billy Eckstine por causa dele. Ou, sei lá, por causa do Paulo Francis falando do paixão de Ivan pelo vozeirão de “I apologize” . Ali, definitivamente, tinha muita coisa.
Nada, aliás, que esse trecho do “Pasquim” de 1970 não resuma. Chama-se “Canção da volta” – ao Rio, naturalmente: “O seio da família brasileira tem um bicão roxo e duro. As pessoas de olhos e nariz vermelhos correm o risco de passarem por subversivas. Há um excesso de bandeiras em todas as partes. Já no Flag, ninguém dá bandeira”.
E que também seja difícil de entender com a leitura de “Eles foram para Petrópolis”, a piradíssima correspondência com Mario Sergio Conti que dei muito de presente. Valia, acho, por seu email reagindo à morte da mãe, Elsie Lessa, e pelo pastiche de um caso do doutor Freud, que depois de uma complicadíssima associação de idéias, o doutor Sig conclui que tudo aquilo não significava nada. Nadinha.
Nesta que fica sendo sua “última coluna” na BBC, cheia de recados sobre a morte que fazem a delícia do jornalismo premonitório (mas que, convenhamos, deviam ser rotina na cabeça de quem andava muito doente aos 77 anos), Ivan está tinindo: pouco importa onde o texto pode ir ou te levar, o que interessa é o caminho e o quanto ele suporta de ironia, escracho, brincadeira de moleque, melancolia, amargura. Um texto daqueles que, para correr como conversa, precisa de trabalho de peão.
Ele tinha horror a clichê e vou ficar por aqui antes que fale de uma “perda” ou que o imagine “encontrando o Millôr”. Prefiro, como tributo, virar um Coronel Kurtz dos pobres diante da manchete que vejo na web:
“Avesso a badalações, escritor Ivan Lessa será cremado”.
Mas não sei se grito ou se caio na gargalhada.