Clique aqui para ver a carta anterior Clique aqui para ver a carta seguinte
Pô, JP.
Assim você me quebra as pernas. Macau? Um mês e meio? Não vai ter epístola chicagoana que se equipare à magnificência do seu tour asiático. Sensacional, meu. Aguardo ansioso as notícias do lado de lá.
Concordo com isso que você falou sobre morar fora. Tenho certas dúvidas se ao final vou conseguir me entender melhor, mas é fato que as coisas ganham outro tamanho e importância. Sobre o lance da comunicação, acho que o problema é que a gente nunca é a mesma pessoa falando em língua estrangeira, e de repente você se vê flutuando entre duas versões de si, uma delas gaguejante e meio infantilizada, a outra razoavelmente madura, articulada e cheia de coisas supostamente interessantes pra compartilhar com a humanidade. Eu fico tentando juntar as duas pontas, mas cadê que eu consigo?
Tô gostando do curso. É pequeno, concentrado, multidisciplinar, bem como eu queria. A carga de trabalho é pesada, e tem dias que passo mais horas dentro da biblioteca do que em casa. O lado ruim é que tenho lido menos ficção do que eu gostaria. Minha sede de narrativa tem sido parcialmente saciada pelas prévias republicanas – uma mistura de Ionesco com programa do Alborghetti – e pela tentativa de cobrir algumas das minhas lacunas dramatúrgicas. Ando obcecadinho pelo Harold Pinter, um desses caras que abrem umas portas novas dentro da sua cabeça, e tenho dado uma olhada nuns dramaturgos contemporâneos. Esses dias li uma peça boa, Mr. Marmalade, sobre uma menina de 4 anos cujo amigo imaginário é um executivo que bebe, cheira e gosta de espancar o assistente.
Que bom que o Old Navy ainda tá lá. Dormirei tranquilo por causa disso. Você falou sobre o seu primeiro dia em Paris, e isso me fez pensar num negócio. Tenho péssima memória pra algumas coisas, mas por algum motivo consigo lembrar com perfeição da primeira vez que pisei em certos lugares. São lembranças intrincadas, que incluem estados de espírito e impressões subjetivas. Morei em Paris em 1997 e apaguei quase tudo o que aconteceu comigo por lá – mas lembro de cada detalhe do dia que cheguei. O mesmo aconteceu quando mudei de apartamento em São Paulo, ou quando aterrissei em Chicago. Já faz quase 6 meses, mas ainda lembro do cheiro do aeroporto, das janelas engorduradas do táxi, da mistura de excitação e melancolia quando o carro abandonou a via expressa e a gente começou a ver o primeiro amontoado de predinhos geminados, um depois do outro, entremeados por praças verdejantes e Walgreens ocasionais. Então isso é Chicago, eu me dizia, sem ter a menor ideia do que “isso” era, olhando pra fora feito um zumbi ou uma criança, tentando entender se os grunhidos do taxista eram uma forma de diálogo ou manifestações espontâneas de uma mente perturbada. Lembro de um ciclista de vermelho. De segurar na mão da Belle. De um hospital infantil. E de uma vontadezinha discreta de cair no choro.
No mais é o inverno, ou o que quer que seja a máquina de subtrair orelhas que é a vida lá fora. Semana passada a sensação térmica bateu em 22 negativos. Não é frio, cara, é outra coisa. Chega um ponto em que o efeito que a temperatura tem sobre você alcança uma dimensão quase moral. Às vezes parece melhorar, e você consegue atravessar um quarteirão inteiro se sentindo um esquimó graduado, mas então chega a próxima esquina e um sopro nascido em algum grotão ártico acerta a tua cara e te devolve à realidade. É humilhante. Por sorte existe o álcool – e um dia preciso te escrever com calma sobre a coisa prodigiosa que é o mercado de cervejas locais por aqui.
O teu argumento: manda aí. Vou ter o maior prazer em ler.
Grande abraço,
Chico