Amizade

Colunistas

05.12.11

Se já é difícil para um estrangeiro na Alemanha evitar ver sinais de nazismo por todos os lados, mesmo quando não há sinal nenhum, que dizer de quem sobreviveu aos guetos e ao trabalho forçado depois de perder pai e mãe nos campos de extermínio? Paul Celan, um dos maiores poetas do século XX em língua alemã, tinha razões de sobra para ver traços do nazismo em toda parte.

Comprei, há duas semanas, em Paris, a correspondência (publicada na Alemanha em 2008) entre Celan e Ingeborg Bachmann, a poeta austríaca com quem ele manteve uma intensa relação amorosa e intelectual, em Viena, depois da guerra. A correspondência não é menos intensa e conturbada, a ponto de os missivistas pensarem duas vezes antes de enviar suas cartas – e muitas vezes preferirem não enviá-las, optando por uma versão mais ponderada (e menos devastadora).

O volume também inclui as cartas que Celan trocou com Max Frisch – o autor suíço de Homo Faber e Andorra e companheiro de Bachmann no final dos anos 50 – e as que Bachmann trocou com a mulher de Celan, Gisèle Cela-Lestrange até depois do suicídio do poeta, em Paris.

Em 1959, Celan identifica na ambiguidade de uma resenha sobre sua obra, publicada nas páginas culturais do Tagesspiegel, de Berlim, traços de antissemitismo. Escreve uma carta indignada ao jornal. Pede conselho a Max Frisch, que ele não conhece pessoalmente, sobre como reagir ao que define como sendo “Do hitlerismo, do hitlerismo e do hitlerismo”. E é admirável a coragem de Frisch ao responder de um modo que, embora incisivo ao contrariar a visão de Celan, nunca perde de vista que é, afinal, da amizade que trata essa correspondência.

Não há autor no mundo que não tenha se sentido alguma vez injustiçado. O reconhecimento está sempre aquém da autoimagem, que é uma forma natural de defesa contra a insegurança. E o ressentimento é um lugar-comum a evitar. Mas há circunstâncias excepcionais em que a violência e os horrores da realidade terminam por transformar, mesmo entre as pessoas mais fortes, essa semente em loucura.

Na primeira versão (não enviada) da resposta a Celan, Frisch confessa sua fraqueza: “Vivo com uma ferida que você certamente não me infligiu, nem você nem Hitler, mas ainda assim uma ferida que me deixa sensível a um ponto doentio, me sinto muito facilmente traído, devassado, ultrajado, excluído, abandonado; propósitos que ficam em cima do muro me envenenam, as negligências bastam para me martirizar, e com frequência, com muita frequência, preciso invocar todas as minhas forças para não me sentir magoado pela simples imaginação, para não converter minha razão em brilhante autojustificação num movimento de legítima defesa”.  E, depois de cinco tentativas de cartas abandonadas, na que enfim envia ao poeta: “(sua resposta ao jornal) me leva a crer, sem questionar, que você está perfeitamente isento das emoções que nos invadem, a mim e aos outros, isento de reações de vaidade e de ambição ferida. Pois se houvesse ainda que fosse apenas um vislumbre disso na sua cólera, a invocação dos campos da morte, me parece, seria ilícita e monstruosa. (…) Talvez você não precise do que eu entendo por amizade, talvez nem a deseje, mas é a única coisa que tenho a oferecer”.

Um ano depois, Celan vai receber um novo golpe ao ser pública e levianamente acusado de plágio pela viúva do poeta Yvan Goll, cujos poemas ele havia traduzido. O caso o deixa profundamente abalado. Em 1961, numa carta tampouco enviada, Bachmann escreve: “Creio realmente que a sua maior infelicidade reside em você mesmo. (…) Você perde amigos porque as pessoas sentem (…) que, para você, tampouco conta a ação delas de contrariá-lo quando lhes parece necessário. (…) Eu não reclamo. Sempre soube, sem saber, que o caminho que eu queria tomar, que tomei, não seria semeado de rosas. (…) Entenda: acredito em você, em tudo o que você diz, tudo. Só não posso crer que as fofocas, as críticas se limitem a você, pois podia muito bem crer que elas se limitassem a mim. (…) Você consente na sua infelicidade e assim lhe abre caminho. Você quer ser destruído por ela, (…) quer que essas pessoas sejam culpadas por você, (…) não acredito que o mundo possa mudar, mas nós, nós podemos mudar, e eu desejo que você possa mudar”.

É uma correspondência linda e violenta, marcada de silêncios, de cartas que não podem ser enviadas. E, ao mesmo tempo, pelo esforço e a coragem de tentar dizer o que não pode ser dito, pela amizade que permite dar a entender a Celan que ele é vítima de um passado para o qual não há redenção. E que o continua destruindo por meio de sua obsessão por fazer os responsáveis pagar por um crime para o qual nenhuma pena será suficiente.

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