Sócrates, o futebol, o cinema

No cinema

05.12.11

Atendendo a pedidos, escrevo algumas palavras sobre Sócrates, morto ontem (domingo) aos 57 anos.

Quebrei a cabeça buscando um modo de conciliar o craque com o assunto deste espaço, o cinema. (Passei anos falando de cinema e literatura numa coluna de futebol, é justo que fale um pouco de futebol aqui.)

O fato é que poucas figuras do mundo futebolístico são tão “cinematográficas” quando Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, jogador de futebol, médico, ativista político e boêmio. São inúmeros os pontos de intersecção desse personagem com o cinema. Vamos a alguns deles, sem muita preocupação com a ordem.

Em 1982, na Copa do Mundo da Espanha, Sócrates e seus fabulosos companheiros de seleção (Zico, Falcão, Cerezzo, Júnior, Leandro etc.) praticaram o que foi chamado pela imprensa europeia de “futebol de cinema”. A emoção estética produzida por aquele time reverbera até hoje no coração, na retina e na mente de quem não considera a vida um mero confronto entre winners losers, mas uma aventura muito mais rica, em que entram o risco, o drama, a dança à beira do abismo.

De punhos cerrados

Dançar à beira do abismo, aliás, foi uma coisa em que Sócrates se especializou. Todos lembram que no início dos anos 80, em plena ditadura militar, ele capitaneou a “democracia corintiana”, que se confrontava diretamente com as práticas autoritárias e retrógradas do mundo futebolístico – e, por extensão, do regime. Sócrates militou ativamente contra a ditadura, com suas faixas de cabelo com declarações pelas liberdades democráticas, sua participação nos palanques das Diretas-já, suas comemorações de gol com o braço erguido e o punho cerrado. (Que imagem bela e cinematográfica!)

Não por acaso, tentou-se desvirtuar o sentido e a importância da democracia corintiana, tratada como se fosse uma iniciativa de um grupo de jogadores folgados que só queriam o fim da concentração e o relaxamento do controle do clube para poder cair na gandaia.

Talvez tenha sido esse o desafio mais espinhoso enfrentado por Sócrates: o de brigar contra uma arraigada mentalidade (de raiz cristã, talvez) do sacrifício, do “muito trabalho e pouca diversão”, combinada com um pragmatismo capitalista que condena os futebolistas de talento a serem máquinas de ganhar dinheiro. Jovens milionários que, ao primeiro deslize, são linchados moralmente pela torcida e pela mídia.

Sócrates bebia e fumava mesmo quando era jogador profissional. Nunca foi um “atleta” no sentido convencional do termo. E daí? Jogava como poucos, tinha um estilo personalíssimo, dava espetáculo, conquistava vitórias e títulos, respeitava os companheiros, os adversários, a torcida. O que mais importa?

Claro que seu descuido com a saúde e a preparação física abreviou sua carreira e o impediu de ganhar um punhado de dólares a mais. Mas foi sua escolha. Quando foi jogar na Itália, na Fiorentina, Sócrates “não deu certo”, segundo o veredito convencional. No inverno, seu corpo magro não suportou o frio, seu rendimento caiu. De novo pergunto: e daí? Passou um ano em Firenze, aprendeu um monte de coisas, curtiu a vida, cresceu como indivíduo.

Fora de registro

Diferentemente de outros craques derrubados pelos excessos – Garrincha, Maradona -, Sócrates não se enquadra no registro da tragédia. Mesmo nos meses finais, em que o país inteiro se afligia com suas crises e internações, ele parecia emanar uma consciência e uma serenidade absolutas, sem discursos melodramáticos de arrependimento (à la Maradona), sem conversões de última hora ao bom-mocismo.

Viveu, em suma, a vida que quis viver. Sua trajetória “daria um filme”, como se costuma dizer, mas não um caça-níqueis maniqueísta e edificante de Hollywood. Para dar conta de um personagem assim complexo e cheio de arestas, seria preciso um cineasta de mente aberta e coração grande, como um John Huston, um John Cassavetes, um Joseph Losey, que sei eu?

Sócrates, de todo modo, não passou em branco pelas telas de cinema, assim como não passou em branco pela vida. Além de sua presença em documentários sobre o Corinthians ou sobre o futebol brasileiro, ele atuou no papel de si mesmo num dos raros bons filmes de ficção ambientados no universo futebolístico, Boleiros 2, uma obra geralmente subestimada de Ugo Giorgetti.

Ali, numa mesa de bar, falando sobre futebol com outros ex-jogadores (vividos por atores como Flavio Migliaccio e Adriano Stuart), o craque estava em seu elemento, traduzindo em sabedoria sua experiência dentro e fora dos campos. Aqui, o trailer do filme, como um último brinde a um homem cuja vida, tenho certeza, valeu a pena.

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