Ilustração do livro O árabe do futuro, do quadrinista Riad Sattouf
Participei recentemente de um festival literário na França que, por conveniência da programação multitemática, optou por dividir os debates por assuntos estapafúrdios. Fiquei com o Brasil e a Guerra. Nenhum assunto é estapafúrdio em si, enquanto não for associado a outro. E, como em geral ninguém vai a festivais literários para debater, em princípio não deveria haver nenhum problema.
Aos participantes bastava dividir a mesma mesa-redonda em dois momentos distintos. Mas a verdade é que o primeiro, reservado ao Brasil (e com a participação de um escritor francês muito simpático, mas que insistia em identificar o país do samba e do futebol à “mulher amada”), já teria sido um desastre mesmo sem a constrangedora comparação com o que viria a seguir, quando o ex-correspondente do jornal Libération no Oriente Médio, Sorj Chalandon, e o quadrinista franco-sírio Riad Sattouf, que em princípio estavam ali para falar de guerra, iniciaram um diálogo engraçadíssimo.
Pouco antes do encontro, um gordinho com cara simpática e barba por fazer se aproximou de mim e me cumprimentou como se fôssemos amigos. Era Riad Sattouf. Nossos colegas de mesa estavam atrasados. Sem ter do que falar (àquela altura, eu ainda não tinha lido L’arabe du futur – O árabe do futuro, Uma juventude no Oriente Médio (1978-1984), primeiro volume de sua autobiografia em quadrinhos), perguntei desde quando ele estava em St. Malo. Encostado na janela da sala de conferências com vista para o mar, o quadrinista e cineasta aproveitou a deixa para, como numa caricatura, se queixar da vida em Paris e exaltar as belezas da Bretanha. E eu, que já estava ali fazia dois dias, dando biscoitos amanteigados a gaivotas, não me contive: “Você pode imaginar o que deve ser isto no inverno? Sorte a sua, que mora em Paris”.
“Você não gosta da Bretanha?”, o árabe do futuro rebateu, forçando um tom de indignação que na mesma hora me fez entender que eu não estava diante de um idiota. Durante a mesa-redonda, quando o escritor francês se mostrou realmente indignado, como se eu o tivesse ofendido pessoalmente ao criticar a precariedade do saneamento básico das cidades brasileiras (“Não sei se entendi direito, mas, pelo que você está dizendo, você não gosta do Brasil?”), Riad se adiantou e tomou a palavra, antes que eu pudesse me defender: “Isso não é nada. Ele também não gosta da Bretanha!”.
Ao contrário do francês que insistia em associar o Brasil a uma namorada (o que justificava sua indignação quando mencionei problemas de saneamento básico), Riad parecia saber do que estava falando. Passou boa parte da infância na Bretanha, primeiro durante as férias (na casa lúgubre da avó materna) e depois quando a família voltou de vez para a França. Os pais de Riad se conheceram no bandejão da universidade, em Paris. O pai era um bolsista sírio, estudante de história que sonhava em dar um golpe de Estado quando voltasse a seu país, mas que acabou como professor universitário na Líbia de Kadafi, para onde arrastou a mulher francesa e o filho pequeno.
Entre as passagens de O árabe do futuro que Riad cita durante o encontro em St. Malo, está o episódio da mãe radialista. Sem ter o que fazer enquanto o marido dava aulas na universidade de Trípoli, a mãe do quadrinista foi trabalhar na rádio estatal, como locutora do noticiário em francês. O trabalho era simples. Tinha apenas que ler o texto que lhe era fornecido por um agente do regime. Até o dia em que, depois de anunciar, sempre no tom inalterado dos locutores de noticiários, que o coronel Kadafi pretendia invadir a França, atravessar o oceano e matar Reagan, filho de uma cadela, não aguentou mais e explodiu numa gargalhada. Quando foi chamado a prestar explicações sobre o motivo incompreensível do riso da mulher, o pai de Riad teve de dizer que tinha se casado com uma histérica, para salvar a pele da família.
Lá pelas tantas, o ex-correspondente do Libération se vira para Riad e diz baixinho: “Mas Riad, no seu livro você se autorretrata como um menino de cachinhos de ouro”. Ao que o quadrinista, que tem barba e cabelo preto, se apressa em mostrar, por baixo da mesa, como prova, uma foto de infância que ele guarda no celular para momentos como esse. Na foto, um menino de profusa cabeleira loura, cortada em forma de cuia, posa entre as pernas de seus avós paternos, uma caricatura do casal árabe muçulmano, a mulher coberta dos pés à cabeça e o marido com turbante e túnica beduína. “Mas Riad, você foi sequestrado na infância!”, exclama o ex-correspondente do “Libé”.
Por sua história, Riad Sattouf tem com as nações uma relação mais objetiva, mais inteligente, mais humorada e bem mais sã do que seu pai, um iludido do pan-arabismo, e do que o nosso amigo escritor francês, a ver no Brasil a mulher amada. Participei de mais um debate durante o festival, desta vez dedicado apenas ao Brasil, e mais uma vez a ideia fixa do amor pátrio veio à baila (como se, para os franceses, fosse inadmissível um brasileiro não amar o Brasil, o que não deixa de ser uma forma de paternalismo).
Voltei para o Brasil na véspera do primeiro jogo da Copa e me espantei com a publicidade de um banco que, aproveitando a ocasião, exaltava o espírito da nação, à maneira de um programa ideológico, o que me fez lembrar aqueles plásticos que na infância, durante a ditadura militar, a gente era encorajado a colar nos vidros dos carros e que diziam: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Há mais de dois meses, pedi um atestado de residência fiscal à Receita Federal do país que eu não sei se amo, mas onde nasci, onde vivo, onde pago meus impostos e onde tento realizar as coisas nas quais acredito. Até hoje não sei do documento, do qual dependo para receber os royalties dos livros que publico fora do país. Voltei à Receita na semana passada para entrar com um novo pedido e averiguar o que tinha acontecido com o anterior. Depois de três horas na fila, continuei sem saber nada. Repetiam apenas que esse tipo de processo costuma levar dez dias. O meu continuava em andamento depois de dois meses, sem previsão. Em compensação, enquanto examinava o novo pedido com uma lupa, o funcionário me assegurou: “Isto aqui vai dar problema”. “Por quê?” “Por que o formulário devia ter sido impresso na frente e no verso da mesma folha e não em duas folhas.” “Mas você vai escanear o processo! O processo é digital. Tanto faz se o formulário foi impresso em frente e verso ou não, porque vai aparecer em folhas separadas de qualquer jeito, no mesmo arquivo eletrônico.” “Então, vou escrever aqui que você imprimiu em duas folhas em vez de frente e verso”, o funcionário insistiu. “Pra quê?” “Para eles saberem que o processo está irregular e tomarem as providências que acharem necessárias.”
Afinal, se podemos dificultar a vida das pessoas, para que facilitar? Depois de três horas de fila e dois meses de espera por um documento que poderia ser dado automaticamente, contra a apresentação do número do CPF, saio da Receita pronto para dar um tapa na cara da namoradinha do escritor francês, se algum dia a encontrar.