Há cineastas que são admirados e respeitados a uma certa distância, como que olhados de baixo para cima: Lang, Hitchcock, Bresson, Kubrick. Outros são sobretudo amados: Renoir, Fellini, Kurosawa, Truffaut. Há na obra destes últimos um calor humano que dá ao espectador a ilusão de ser amigo pessoal, íntimo, de cada um deles.
É mais do que provável, portanto, que a megaexposição “Truffaut: um cineasta apaixonado”, aberta esta semana no MIS de São Paulo, converta-se num acontecimento inesquecível para os cinéfilos paulistanos e visitantes da cidade. A mostra, que vai até 18 de outubro, traz cerca de 600 itens, entre desenhos, fotos, objetos de cena e pessoais, livros, revistas, roteiros, trechos de filmes e entrevistas do diretor.
Mas o que torna Truffaut tão querido? Sua filmografia é irregular, com sucessos e fracassos tanto de público como de crítica, incursões nem sempre bem-sucedidas em distintos gêneros, do drama de época à ficção científica, da comédia ao policial. Mesmo em seus pontos mais baixos, porém, é perceptível o seu amor ao cinema, a sua entrega plena a essa arte que ele via como a forma contemporânea de realização de uma necessidade multimilenar do homem, a de criar ficções – e acreditar nelas, ao menos por um par de horas.
Mulher, cinema, infância
Em meio a essa obra plural, heterogênea, dois eixos principais se destacam: a relação de Truffaut com o amor – ou antes, com a mulher – e a relação com o próprio cinema. Um tema subsidiário seria o da infância, mas veremos que no fundo ele tem a ver com os outros dois.
No coração do cinema de Truffaut está a mulher. Não por acaso, ele disse certa vez, em tom mais ou menos sério, que “o papel do diretor de cinema é mostrar uma mulher bonita fazendo coisas bonitas”. Não se trata de um cinema que busque o ponto de vista feminino. Com exceção, talvez, de A noiva estava de preto (1967) e de A história de Adele H (1975), quase sempre o que vemos no centro de seus filmes é um homem fascinado, perplexo e desconcertado pela mulher.
Isso é particularmente visível na série com o personagem Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) – Os incompreendidos, Antoine e Colette, Beijos proibidos, Domicílio conjugal, O amor em fuga – e em filmes como Jules e Jim, A noite americana, De repente num domingo e, claro, O homem que amava as mulheres. Um trecho admirável deste último sintetiza essa fascinação, esse desconcerto, essa vertigem diante do feminino:
Desnecessário dizer que um certo feminismo afoito censurou essa adoração à mulher como uma forma disfarçada e insidiosa de machismo. Paciência. Desnecessário também notar que Truffaut, como George Cukor, foi um diretor de belas atrizes: Jeanne Moreau, Françoise Dorleac, Catherine Deneuve, Jacqueline Bisset, Isabelle Adjani, Fanny Ardant. De todas ele soube captar a delicadeza, a força e o mistério.
Godard: amor e ódio
Mas o encanto de Truffaut vem também de sua relação rica e complexa com o próprio cinema. Curiosamente foi essa paixão comum que o aproximou e depois o afastou radicalmente de Jean-Luc Godard, o outro grande nome de sua turma e geração, a dos Cahiers du Cinéma e da Nouvelle Vague.
Ambos discípulos de André Bazin, eles militaram juntos como críticos nos Cahiers em defesa do cinema norte-americano “de autor” (Ford, Hawks, Hitchcock, Welles) e contra o acadêmico e embolorado “cinema de qualidade francesa” que vigorava nos anos 1950. Truffaut escreveu o roteiro do primeiro longa de Godard (Acossado, 1959) e juntos fizeram o lindo curtaUne histoire d’eau (1961). Depois dessa fase heroica, afastaram-se cada vez mais. Enquanto Godard radicalizava sua ruptura com o cinema narrativo convencional, Truffaut buscava se aprimorar e aprofundar no domínio dessa narrativa, chegando a declarar que, com o tempo, descobriu que não havia nada como a decupagem clássica, isto é, com o cinema ilusionista, que conduz o olhar do espectador sem que este perceba.
No centro dessa discórdia está A noite americana (1973), em que o próprio Truffaut atua como um cineasta às voltas com os dramas e comédias dos bastidores da realização de um filme. É um dos grandes sucessos da carreira do diretor e um dos filmes mais queridos por seus admiradores. Mas Godard, que havia desconstruído estética e politicamente a realização cinematográfica em O desprezo (1963), acusou o ex-amigo de mistificar e falsear seu métier. (Curiosamente, as trilhas dos dois filmes foram compostas pelo grande Georges Delerue, parceiro habitual de Truffaut.)
Não é necessário tomar partido de um ou de outro, nem tampouco considerar que o “verdadeiro cinema” é o de Truffaut ou o de Godard. Mais vale encarar essa relação de amor e ódio como um momento único do cinema, em que duas obras distintas ao extremo, mas ligadas de modo umbilical, iluminam-se mutuamente e enriquecem a sensibilidade do espectador. Neste trecho de A noite americana, vemos uma dupla homenagem do diretor a Delerue e a seus cineastas favoritos:
O homem-menino
Chegamos então à infância, tema caro a Truffaut. Crianças ou pré-adolescentes estão no centro de Os incompreendidos, O garoto selvagem e Idade da inocência, mas o que me parece mais interessante é o modo como, em praticamente todos os filmes do diretor, os homens adultos se desarmam, se fragilizam e de certo modo voltam a ser crianças diante da mulher e diante do próprio cinema.
Antoine Doinel é um adulto que ao longo do tempo se casa, tem vários empregos e no entanto segue sendo um menino confuso e travesso, assim como o protagonista (Charles Denner) de O homem que amava as mulheres. E Ferrand, o cineasta de A noite americanavivido pelo próprio Truffaut, não deixa de ver o seu ofício como uma grande brincadeira de faz-de-conta, ou, como disse Orson Welles, “o maior trenzinho elétrico que um garoto já teve”.
Faltou falar de outra relação fundamental, entre Truffaut e a literatura, mas fica para outra ocasião.
Para finalizar, como um regalo ou um aperitivo, vai aqui um trecho de Jules e Jim em que comparecem o amor, a amizade, a infância, o cinema, tudo junto e misturado, mostrando de resto que, com ou sem trapaça, em Truffaut a mulher sempre vence: