Star wars e as mitologias instantâneas

No cinema

24.12.15

Diante de um fenômeno de mercado e de mídia como Star wars: o despertar da força, a crítica de cinema pode muito pouco. Desde que as sagas e séries passaram a ser chamadas de “franquias”, escancarou-se o seu caráter ostensivamente comercial, de produto descartável.

Mas eis que este novo episódio (exemplar? capítulo?) de Star Wars dá uma curiosa volta sobre si mesmo. Ao narrar a busca pelo desaparecido Luke Skywalker (Mark Hamill), pretende de algum modo resgatar a aura comparativamente “ingênua e romântica” dos primeiros da série, realizados nos anos 1970 e 1980.

Épico frouxo

É evidente a tentativa de conferir uma dimensão mítica aos personagens dos longas originais: Han Solo (Harrison Ford), Princesa Leia (Carrie Fisher) e o próprio Skywalker, além de uma porção de robôs e seres bizarros devidamente antropomorfizados. Não só aos seres, aliás, mas também às máquinas e objetos: determinada nave, determinado sabre de luz etc.

É aqui que, a meu ver, o filme de J. J. Abrams mostra sua frouxidão. Os momentos em que ele poderia e deveria ascender ao estatuto do épico carecem de força e grandeza. Exemplos: a cena em que a agora general Leia diz a uma guerreira novata a célebre frase May the force be with you, ou o instante em que enfim Luke Skywalker faz sua aparição.

Nas mãos de um verdadeiro cineasta (não é preciso recuar até John Ford; basta pensar em Spielberg), tais momentos poderiam ser grandiosos, sublimes, ou no mínimo comoventes. É uma questão de mise-en-scène, isto é, de ritmo, enquadramento, direção de atores. Nada a ver com os milhões e os efeitos especiais. Tal como foram filmadas, no “automático”, sem inspiração, essas cenas dificilmente conseguem tirar o espectador do aturdimento causado pelas batalhas. (Confesso que quando o filme entra no modo videogame, com suas explosões e pirotecnias em cenários incompreensíveis, perco totalmente o interesse.)

Um raro lance de bom cinema que ilumina por contraste a banalidade do resto é aquele em que um stormtrooper (aqueles soldados robóticos, blindados de branco da cabeça aos pés) socorre um companheiro ferido e fica com as marcas de sangue da mão deste em seu capacete. Além da beleza em si da imagem (listras vermelhas sobre o branco reluzente), há ali a criação visual de um personagem, a humanização de alguém saído da massa indistinta e anônima, alguém que desde então sabemos que desempenhará um papel central na ação.

Maniqueísmo radical

Mas voltemos à autorreferência que permeia esta e outras séries recentes do cinema. Curioso pensar na rapidez com que os mitos se reciclam em nosso tempo. Homero compôs a Ilíada, com base em diversas fontes da tradição oral, cinco séculos depois dos acontecimentos reais da Guerra de Troia. Agora bastam algumas décadas para que se construa uma mitologia autocentrada, produzida exclusivamente na fantasia.

Uma fantasia poderosa, sem dúvida, pois nem todo o aparato de publicidade do mundo seria capaz de fazê-la enraizar-se em gerações de fãs se ela não tivesse tocado em algum ponto nevrálgico do imaginário contemporâneo. A questão é saber que ponto é este.

Uma pista é dada, meio de passagem, numa fala do filme. Alguém comenta que “o lado negro da força” está sempre presente, sob uma forma ou outra: o Império, os Sith e agora a Primeira Ordem. O pensamento maniqueísta de que há uma eterna luta entre o Bem e o Mal (assim mesmo, em maiúsculas, representando forças puras e absolutas), de que o inimigo se transmuta em diferentes faces e disfarces, impregna o imaginário ocidental judaico-cristão há milênios, mas ganhou um tremendo alento na ideologia norte-americana de salvação do mundo pelas armas – curiosamente simétrica à ideologia de “guerra santa” do inimigo atual.

Índios, nazistas, comunistas, terroristas árabes: há sempre um “outro” que encarna o mal insidioso e que precisa ser destruído. Mas não de todo, claro. É preciso que seus avatares sempre voltem, para novos combates. Senão, o que seria da indústria de armas – e da indústria do cinema?

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