Falta um Tarantino no Brasil. O oitavo filme do diretor americano, Os Oito Odiados, é um faroeste no sentido mais abrangente do termo (o filme é ambientado em Wyoming, em um armazém isolado nas montanhas durante uma nevasca, terra de ninguém) e trata de racismo, assim como o precedente, Django Livre. O país acaba de sair de uma guerra civil sanguinolenta para extirpar a escravidão, mas o racismo continua grassando em território nacional. (Tarantino disse recentemente que a bandeira confederada, sulista, é a suástica dos Estados Unidos.)
Passei o fim de ano na casa de amigos na praia. Na véspera do ano-novo, um casal de vizinhos veio nos visitar. Mal tinham chegado e o marido já estava me explicando o que é totalitarismo: “É quando tenho razões legais para pedir o afastamento da presidente e chamam a isso de golpe”. O vizinho se apresentava como um liberal, defensor do federalismo sem a interferência do Estado: “Os Estados Unidos é que fizeram a coisa certa. Lá, o Estado não interfere nas decisões dos estados. Cada estado tem autonomia para definir suas políticas e usar seus impostos do jeito que quiser”.
Embora entre as minhas resoluções de ano-novo estivesse a de nunca mais me meter em discussões nas quais não há a menor chance de chegar a lugar algum, achei por bem intervir com uma ponderação discreta. Eu disse: “Claro, mas se o seu estado decidir que quer continuar sendo racista, por exemplo, o Estado tem o dever de intervir, para que você não siga discriminando entre cidadãos de primeira e segunda classe. A mesma lógica serve para o caso de seu estado se recusar a casar homossexuais depois de a Suprema Corte ter se decidido a favor do casamento gay. É preciso uma autoridade federal, superior, para impor a igualdade de direitos, decretada por lei, para todos os cidadãos”.
“Sim, mas veja bem”, respondeu o vizinho. “Veja o que está acontecendo com todos esses exageros. Veja as cotas, por exemplo. Tudo isso já está sendo questionado. Aqui no Brasil nós temos o quê? Seis por cento de negros? As cotas encobrem o verdadeiro problema, que é a desigualdade social. As cotas deixam de lado quem realmente precisa.”
Um perfil começava a se delinear. O vizinho era dessas pessoas que passaram a ver a pobreza e a desigualdade social do país no dia em que foram instituídas as cotas raciais.
“Seis por cento?”, eu perguntei. “O resto são mulatos”, o vizinho respondeu.
Pesquisas nos Estados Unidos mostram que o apoio às políticas de ação afirmativa (cotas etc.) varia conforme a proximidade ou identificação com o grupo que essas ações visam defender. A maioria dos americanos é a favor de ações afirmativas que protejam as mulheres de desigualdades nos empregos e distorções nos salários. Mas esse apoio diminui em relação aos negros e ainda mais em relação aos gays, o que faz pensar que o problema com as cotas talvez não sejam as cotas, mas quem elas protegem.
Como a conversa na praia não avançava, decidi comprazer com o vizinho. Disse que suas ideias estavam se tornando norma. Ele encheu o peito e respondeu orgulhoso: “Nós estávamos esperando por isso há anos!”. E, para não estragar o clima de réveillon, arrematei, sorrindo: “Só peço que você não se esqueça de mim quando estiver no poder e me deixe sair daqui ou, se possível, me arrume outra nacionalidade, por favor”.
Nessa hora, a mulher do vizinho, que já estava de orelha em pé e tentava acompanhar tudo de longe, se aproximou: “Nós queremos ficar pra organizar, pra pôr o país em ordem”. “Deixo vocês organizarem tudo sozinhos”, respondi. “Só quero poder ir embora antes.”
“Ele é de esquerda?”, a mulher perguntou ao marido. E, ao se despedir dos outros, sem resposta para sua pergunta, virou as costas e saiu sem falar comigo.
O filme de Tarantino não poupa piadas e injúrias racistas, quase sempre fazendo a sala gargalhar. É um método arriscado, mas muito potente, de levar o racismo a nocaute – pela exaustão, pela própria truculência e pela própria imbecilidade. É o inverso do politicamente correto. Em vez de proibir e cercear, Tarantino expõe o racismo ao esgotamento, ao enjoo de si, ao ridículo. Faz o mesmo com a violência. Pouco a pouco, o espectador que ri (eu entre eles) vai rindo cada vez mais amarelo.
No filme, o único protagonista negro, um caçador de recompensas que nem de longe se poderia considerar vítima ou indefeso, leva consigo uma carta que recebeu do presidente Lincoln. É um artifício concebido para se proteger, como indivíduo negro, sozinho em terra de ninguém, onde impera a lei do mais forte. A carta simboliza a autoridade do Estado e sua eficácia não é pouca, mesmo na mão de um personagem capaz de impor por conta própria a sua lei, na falta de outra.
Na sessão lotada em que eu estava, havia um único espectador negro, um senhor de cabelos brancos, que saiu cabisbaixo do cinema, com uma expressão que eu tenderia a qualificar de consternada. É possível que se houvesse um Tarantino no Brasil, ninguém risse das piadas dele. É possível que nem chegassem a assistir a seus filmes, se fossem falados em português e contassem a história do racismo neste país, porque há quem diga que não existem negros no Brasil.