A estrofe perdida

Música

12.05.16

Foi obra do acaso em parceria com Chico Buarque. Sem ensaios, o artista lia dia desses em casa para a câmera operada por Laura Liuzzi a carta que, assim como o vídeo de sua leitura, estará exposta na mostra Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio, prevista para reabrir a Pequena Galeria do IMS-RJ no início de junho, com a elegante curadoria de Eucanaã Ferraz.

Datada de 20 de julho de 1975, a tal missiva do Chico para o criador do Teatro do Oprimido trata de parcerias – Mulheres de Atenas havia sido composta para uma peça do Boal que nunca foi encenada –, cogita um encontro entre os dois em Lisboa e, por fim, quase em forma de P.S., apresenta a letra ainda não finalizada para um chorinho do Francis Hime, mais tarde batizado de Meu caro amigo. Foi aí que o acaso entrou na parceria da carta-canção em construção, surpreendendo seu próprio autor.

 

A letra, hoje bem conhecida de todos que admiram o trabalho de Chico, estava na verdade quase pronta, com uma ou outra palavra da primeira estrofe à espera de revisão. Originalmente, começava assim:

 

‘Meu caro amigo me perdoe, por favor

Se eu não lhe faço uma visita

Mas como agora apareceu um portador

Mando um abraço nesta fita

Aqui na terra continua o futebol

Tem muito samba, muito choro e rock’n’ roll

Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.’

 

“E por aí vai”, abrevia o compositor nesta altura da carta. O inesperado vem a seguir, na canja de encerramento da letra para o chorinho do Francis:

 

‘Meu caro amigo eu sei que é triste a situação

Sei que a saudade está danada

Mas se você quiser a minha opinião

Você não está perdendo nada.”

 

Visivelmente intrigado com a descoberta – ele sequer lembrava de ter escrito tal desfecho para a música –, Chico termina a leitura e permanece em silêncio por uns cinco segundos, sem tirar os olhos da carta. Descongela a imagem coçando atrás da orelha direita como quem cavuca a memória: “Engraçado essa estrofe aqui, que nunca… Sobrou, é, sobrou.”

Jamais foi cantada em disco ou show, provavelmente ficaria esquecida para sempre não fosse a exposição no IMS das cartas que Augusto Boal recebeu no exílio, entre elas a que foi escolhida para leitura em vídeo no meio de outras tantas que Chico Buarque escreveu ao amigo no período de desterro (1971 a 1986) da principal liderança do Teatro de Arena (SP) nos anos 1960.

 Augusto Boal nos anos 1970 (crédito: Arquivo pessoal/Cecilia Boal)

Ainda com a câmera ligada, o autor da estrofe perdida comentou que deu vontade de cantá-la enquanto lia a carta. “Tá toda na métrica”, garante. Prova cantarolando os versos que “sobraram”, sabe Deus por quê. Desse tempo, Chico lembra bem que, no ano seguinte, mandou a música para a Censura Federal, “confesso que quase que de sacanagem”.

Depois que Mulheres de Atenas foi proibida, “tive a impressão de que a letra de Meu caro amigo não seria liberada”. E, no entanto, foi. Sinal de que, em 1976, teve início um processo de relaxamento da repressão censória a letras de música no Brasil. “Foi mais ou menos o ano da virada.”

Não de hoje, portanto, Meu caro amigo é uma caixinha de surpresas para Chico Buarque. Não bastasse passar sem cortes pela Censura, “descobri agora esta estrofe perfeitamente cabível na melodia, provavelmente foi um trecho que eu descartei.” O corte, no caso, foi do próprio autor.

Também durante a gravação do vídeo para o IMS, o artista se deu conta de que na época, “sem saber, a letra estava praticamente pronta quando escrevi a carta para o Boal”. O melhor veio depois: “A gente gravou em casa – o Francis tocando piano, eu cantando, a gente bebendo e tal – e mandamos a fita cassete para o Boal ouvir antes de sair em disco.”

Foi, decerto, a melhor pior notícia que o dramaturgo e ensaísta recebeu no exílio: havia na época formas bem mais desagradáveis de saber lá fora que a coisa aqui estava preta.

, ,