Divulgação/Wadjet Eye Games

Os personagens Blackwell e Mallone

Os personagens Blackwell e Mallone

Fantasma na máquina

Games

18.10.16

O ano é 1993, os computadores 386 começam a se popularizar pelo Brasil, e dois irmãos, um de 8 anos e o outro de 12, reviram nervosos um minidicionário português-inglês para descobrir como se diz “gaveta” em inglês. Descobrem e digitam: open drawer. Na tela, um personagem composto de poucos pixels abre uma gaveta e descreve seu conteúdo. Pick up key, um irmão digita, e o personagem pega uma chave.

Foi assim que eu e meu irmão aprendemos inglês – nós e toda uma geração nascida nos anos 1980, que viveram o que hoje em dia é conhecido como “a fase de ouro dos adventures”. Embora os games sejam associados por quem não entende do assunto a jogos de tiroteio e reflexos rápidos usando um controle, houve uma época em que games narrativos, cheios de diálogos e descrições, eram extremamente populares entre crianças, adolescentes e adultos.

Jogos como Maniac mansion (Ron Gilbert, LucasArts/1987) e sua sequência, Day of the tentacle (Dave Grossman e Tim Schafer, LucasArts/1993) , The secret of Monkey Island (Ron Gilbert, Dave Grossman e Tim Schafer, LucasArts/1990),  The dig (concebido por Steven Spielberg, LucasArts/1995) e Broken sword: The shadow of the templars (Charles Cecil, Revolution/1996) marcaram uma geração de modo indelével. Não apenas aprendemos inglês com esses games – nossa educação narrativa se deu através deles. Da mesma forma como a literatura, depois o cinema, depois a televisão moldaram o jeito de os jovens assimilarem uma narrativa, dando a eles as estruturas e a sintaxe básica de “como uma história é contada”, boa parte dos nascidos nos anos 1980 aprenderam com os adventures.

Cena da versão para PC/VGA de The secret of Monkey Island (1990)

Cena da versão para PC/VGA de The secret of Monkey Island (1990)

Com o avanço tecnológico, gráficos mais realistas  se tornaram possíveis e, por um período entre o fim dos anos 1990 e meados dos anos 2000, o público preferia outros gêneros de games, com tiroteios viscerais que davam a sensação de estar ali, no desembarque do Dia D ou enfrentando monstros em um planeta alienígena. Foi uma época em que adventures viraram sinônimo de fracasso comercial.

Porém, nos últimos anos, os games narrativos vêm passando por uma ressurreição impressionante. Com a popularização dos métodos de distribuição digital – como Steam e App Store – é possível que uma pessoa sozinha em sua garagem crie uma obra e a distribua para o mundo. Assim, desenvolvedores de adventures – modernos ou à moda antiga, inspirados nos clássicos citados acima – conseguiram se reconectar com um público que sempre acreditou que os games são um espaço ideal para contar uma história.

Entre os criadores atuais, poucas figuras são mais interessantes do que Dave Gilbert, fundador da Wadjet Eye, empresa responsável por publicar vários games cuja ênfase está na narrativa, mais do que em gráficos ou nos quebra-cabeças de lógica. Além de produzir games ao lado da esposa, Janet Gilbert, Dave escreveu diversos deles. Seu primeiro êxito foi com The shivah (2006), no qual o jogador controla um rabino de uma sinagoga decadente que recebe uma herança misteriosa. O tema do judaísmo nos dias de hoje, na época inesperado para um game, trouxe muita atenção para Dave Gilbert e seu modo artesanal de produção. Feitas no Adventure Game Studio, plataforma que permite que até pessoas com pouco conhecimento em programação criem seus mundos, suas obras têm um visual simples, em baixa resolução, mas com enredos instigantes que exibem um talento considerável para diálogos.

Janet e David Gilbert, da Wadjet EyeDivulgação

Janet e David Gilbert, da Wadjet Eye

Para quem vê de longe, os games da Wadjet Eye parecem um exercício de nostalgia, como se Dave também sentisse saudade dos dias gastos digitando pick up key nos títulos da chamada “era de ouro”. Porém, em conversa que tivemos por e-mail, Gilbert diz olhar muito mais para o presente. “Para ser sincero, detesto o termo ‘era de ouro’, porque deixa implícito que antes as coisas eram melhores. A ‘era de ouro’ acabou há vinte anos. Nós mudamos. Os games mudaram. Nós crescemos. Nossa maneira de consumir games e entretenimento mudou drasticamente”, afirma. “Não quero ser a Sierra ou a LucasArts [desenvolvedoras clássicas dos anos 1990]. Não quero recriar o passado. Estou tentando falar com as pessoas do presente, pois é no presente que está o meu público.”

Gilbert começou a criar games em 2001. Ele havia se mudado para Nova York, estava desempregado, as torres caíram e a desesperança predominava no país. Desenvolveu um game gratuito e com gráficos amadores, mas encontrou o seu público. Tinha histórias para contar, mas ao contrário de outros artistas, não pensou antes de mais nada em escrever um conto ou um romance: “A primeira coisa que notei ao disponibilizar um game na internet é que as pessoas respondiam a ele. Claro, eu poderia escrever um conto e colocar na internet, mas ninguém se importaria. Mas as pessoas corriam para jogar meu pequeno adventure! Era uma sensação maravilhosa”.

Além disso, Gilbert questiona sua capacidade de escrever uma história em prosa tradicional, que “exige um conjunto de habilidades muito diferentes. No fim das contas, escrevi um game porque não saberia escrever nenhuma outra coisa.”

A Wadjet Eye recebeu um grande reconhecimento com o êxito de Gemini rue (2011), que não foi escrito pelo próprio Gilbert, mas pelo jovem Joshua Nuernberger, que criou o game sem quaisquer pretensões comerciais. Um noir futurista com ares de Blade Runner, impressionou a crítica pela ambientação e pelo tom melancólico. Dave Gilbert se deu conta de que Nuernberger trabalhou “de uma maneira totalmente diferente da minha nos primeiros títulos que escrevi. Eu estava tão preocupado com o que as pessoas pensariam que ficava hesitante, e acabei não sendo tão ousado quanto gostaria.”

O resultado dessa lição? Uma grande mudança de tom na série Blackwell, a obra-prima de Dave Gilbert, iniciada em 2006. Narra a história de Rosangela Blackwell, jornalista que é acompanhada por um fantasma carismático, Joey Mallone. O dom mediúnico acaba sendo uma espécie de maldição: Joey segue Rosangela por todas as partes, e Rosangela acaba tendo que dedicar a vida ao seu talento natural: ajudar almas penadas a deixarem o nosso mundo. Para isso precisa convencê-las de que estão mortas, com ajuda de seu parceiro do além. Nos primeiros games da série, o tom do enredo é leve e divertido. Porém, nos dois últimos, Gilbert parece se dar conta de toda a potencialidade de sua história. Os questionamentos metafísicos tomam conta e o game vira um raro caso de adventure existencialista.

Este, portanto, foi o aprendizado de Gilbert, nas palavras dele: “Você precisa contar uma história pessoal, se quiser que ela tenha profundidade. Se o seu desejo de criar não vem daí, se você não tem nenhuma mensagem específica para comunicar, o resultado será superficial e não irá ressoar entre o público. Quando finalmente olhei para dentro de mim e descobri o que eu queria dizer desde o início – que Blackwell é uma história sobre isolamento urbano – os games melhoraram muito. Os personagens pareciam reais para mim.”

Dave Gilbert não se tornou milionário como tantos desenvolvedores independentes que viraram estrelas do dia para noite, mas os games proporcionam uma renda suficiente para sustentar sua vida de classe média no Brooklyn. A empresa, como já mencionei, é um negócio familiar, tocado pelo casal com o auxílio de poucos funcionários terceirizados. Gilbert promete que o próximo game será ainda mais ambicioso, com múltiplas linhas narrativas, escolhas morais difíceis e até mesmo o dobro da resolução, deixando o visual menos antiquado.

Mas Gilbert não teme que, com o avanço tecnológico, seus games percam o charme. Na verdade, é difícil pensar em algum artista mais contente e seguro com sua arte e a recepção calorosa que tem recebido. “Enquanto as coisas continuarem assim, estarei feliz”, afirma. É uma alegria pensar em uma nova geração de crianças, com um dicionário nas mãos (agora, talvez online), aprendendo novas palavras para conseguir acompanhar uma história.

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