Crença cega no próprio ofício

Miscelânea

26.02.13

Poucas discussões são mais saturadas do que “videogame é arte?”. Não que este questionamento não seja interessante e não mereça ser debatido, mas a pergunta tem pululado em todos os cantos do meio cultural, dando a impressão de que todas as opiniões já foram verbalizadas e não há muito mais a ser dito. Recentemente, o MoMA adquiriu catorze games como obras de arte, e o debate voltou à tona. Eu mesmo já joguei um punhado de gravetos sobre o tema, em artigos para as revistas Norte e Vida Simples, e tangenciei o assunto em um texto sobre Robert Walser e Skyrim neste blog. No meio de toda essa fuzarca, um documentário financiado por crowdfunding surge com uma maneira interessante de lidar com o assunto.

Indie game: the movie é obra dos cineastas Lisanne Pajot e James Swirsky, que filmaram centenas de horas de material para compor um filme de uma hora e meia focado em quatro desenvolvedores de jogos independentes. Disponível para compra online com legendas em várias línguas, inclusive português brasileiro, Indie game: the movie não tenta convencer o espectador que videogames são arte ou podem ser arte: ele apenas mostra o rosto das pessoas que de fato criam jogos – jogos pequenos, distantes das megaproduções.

http://www.youtube.com/watch?v=2HOaAMHT-h4

São pessoas simples, como eu e você, mas que acreditam muito no que estão fazendo. Acreditam que, mais do que criar um produto de entretenimento, estão se expressando, comunicando algo ao jogador, da mesma maneira como um escritor com seu livro e um cineasta com seu filme. Ou seja, o documentário não fica insistentemente argumentado nada: videogames são isso, um meio de expressão, e eles estão aí, e já funcionam e são culturalmente aceitos, ao menos pelos jogadores. A pergunta “videogame é arte?”, nesse contexto, parece irrelevante. Para os entusiastas de Braid, Fez e Super Meat Boy, os jogos discutidos no filme, a resposta é óbvia. Perguntar se um jogo pode ser culturalmente relevante, se pode ser sublime, se pode provocar grandes emoções e reflexões é tão estúpido quanto perguntar a um apaixonado por literatura se esse tal de Crime e castigo presta.

Nesse sentido, Indie game: the movie é um documentário que pode ser interessante até para quem nunca tocou num controle de Playstation. Há uma beleza intrínseca em acompanhar a trajetória de underdogs, pessoas sem grandes contatos e sem dinheiro que, movidos por uma crença cega no próprio ofício, perdem noites de sono em suas criações, mesmo sem nenhuma garantia de que terão sucesso. Não há megaempresas por trás deles, no máximo um contrato com a Microsoft ou o Steam garantindo que o jogo deles será vendido nas suas redes de distribuição online.

O documentário é espertamente dividido em três jogos, mostrando quem está em processo de criação (o narcisista Phil Fish), quem está às vésperas de lançar seu primeiro jogo (Edmund McMillen e Tommy) e quem já passou por isso há alguns anos (Jon Blow, de Braid). Desespero de um desenvolvedor atrasado, expectativa de dois desenvolvedores que tiveram sua vida social drenada, e frustração de quem já fez sucesso. Frustração? Sim, Jonathan Blow pode ter enriquecido com Braid, mas insiste até hoje que quase ninguém realmente entendeu seu jogo. Enquanto todos elogiam os gráficos e a jogabilidade, o grande público teria ignorado as reflexões sobre relacionamentos, passagem do tempo e memória. Arrogância do criador? Eu pessoalmente acho o sujeito insuportável na sua maneira de se considerar uma espécie de Proust da era digital. Todavia, ele criou Braid, então tem cem anos de perdão.

Mas o que me levou às lágrimas (não pedirei desculpas por isso) foram duas cenas com Edmund McMillen. Na primeira, ele conta do jogo Aether, criado em homenagem à sobrinha, que, como ele, era uma criança introspectiva com dificuldades de se relacionar com os outros. O jogo é uma recriação metafórica da infância do autor, um modo de compartilhar todos os demônios que o atormentavam:

http://www.youtube.com/watch?v=MQhZlbRzC8s

A segunda, mais interessantes para os fins deste texto, é ao final, quando Super Meat Boy é lançado e se torna um sucesso. Com os olhos cheios d’água, McMillen pensa que, em algum lugar do mundo, existe um garoto que faltou aula para ficar jogando a criação dele, da mesma maneira como ele faltou aulas para jogar Super Mario, Sonic etc. E esse garoto pode, no futuro, também vir a inventar jogos. A capacidade de inspirar outras pessoas – que grande poder, este.

Super Meat Boy foi um sucesso. Talvez isso seja revelar o final do filme, mas se você gosta de videogames, provavelmente já comprou o jogo para PC (está sempre em promoção por uns sete reais). Nos primeiros dias, vendeu dezenas de milhares de cópias, só em Xbox – não vamos nem mencionar a tal da pirataria. Em questão de horas já havia vídeos no YouTube de jogadores emocionados comentando a obra.

No cenário literário brasileiro, escritores comemoram quando, após um ano, o seu livro esgota a tiragem inicial de dois mil exemplares – feito só conseguido, dirão outros, por uma grande conspiração midiática e editorial. Não quero, de modo algum, sugerir ou insinuar que videogames são mais relevantes que literatura. Mas uma observação precisa ser feita: a impressão que às vezes tenho é que há muito mais pessoas esperando um jogo de videogame (pequeno, autoral, feito por uma equipe de duas pessoas sem um tostão no bolso) do que um livro independente em – suponho – qualquer canto do mundo, tirando as raríssimas exceções que viram objeto de artigo nos cadernos culturais. O videogame de marca autoral encontrou seu nicho no mundo capitalista contemporâneo com mais facilidade que a literatura. Daniel Link, crítico argentino, escreveu, em Literatura e mercado: “Se a literatura hoje parece ?coisa do passado’, não é por sua incapacidade de dar conta do presente, mas por sua debilidade de enfrentar a lógica (reificante) do mercado que, por outro lado, é sua condição”.

Mas não vamos sujar – ao menos não hoje – essas maravilhosas palavras, “literatura” e “videogame”, falando de mercado. Vale mais a pena celebrar o êxito dessas pequenas obras radicalmente autorais e comemorar que o videogame talvez esteja dando os primeiros passos rumo ao amadurecimento. Também vale mais a pena jogar Braid. E Bastion. E FTL. E Journey. Sim, Journey. Que jogo, camaradas.

 

Cena de Journey

 

* Antônio Xerxenesky é redator do site do IMS e seu perfil no Steam é este.

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