Em 1985, enquanto Bruce Springsteen era o maior vendedor de discos dos Estados Unidos, com Born in the USA, o Brasil do primeiro Rock in Rio ouvia RPM, Elba Ramalho e Roupa Nova incessantemente nas rádios. Mas naquele ano, outro grande hit, fora do circuito das FMs, dos LPs e dos grandes shows, começava a tomar conta das salas de estar e dos quartos das crianças: “Overworld”, do japonês Koji Kondo. O nome da música e do compositor em nada facilita a memória do leitor, então lá vai a cola: “Overworld” é o nome do tema principal do mais famoso e mais vendido jogo de videogame de todos os tempos: Super Mario Bros. Estima-se que até hoje foram comercializados nada menos que 40 milhões de cartuchos do jogo da Nintendo em todo o mundo. No Brasil, o jogo eletrônico protagonizado pelo carismático encanador italiano e seu irmão, Luigi, se popularizou primeiro pelo videogame nacional compatível com o sistema da Nintendo, o Phantom System, fabricado pela Gradiente. Em seguida, devido ao grande sucesso de Super Mario, uma dúzia de outras empresas também produziram videogames que rodavam os cartuchos de jogos da Nintendo. Mas nenhum deles foi tão marcante para as crianças da época quanto o saudoso Phantom.
Muitas dessas crianças que ficaram hipnotizadas pela trilha de Super Mario Bros. hoje são expoentes da dita “nova” geração de cantores e compositores da música popular brasileira. Ao mesmo tempo em que a infância de grande parte desses compositores foi marcada por discos representativos da música brasileira e estrangeira, a trilha sonora repetitiva dos jogos eletrônicos fez parte desse mesmo momento de formação e, provavelmente, ocupa uma fatia generosa do inconsciente musical de todos. Porém, essa música limitada pela memória de um antiquado microprocessador de 8-bits foi guardada no mesmo espaço destinado à memória auditiva dos jingles comerciais, dos motores dos fuscas, dos reclames dos antigos vendedores de rua e do barulho do toca-fitas rebobinando: tornou-se pura nostalgia do noise de um tempo que não volta mais.
Por que, no universo infantil dos anos 1980 de cada um dos futuros compositores de música popular, o que ouvíamos no rádio ou na vitrola tinha um valor diferente daquela que costumávamos ouvir nos consoles de videogame? Afinal de contas, éramos todos crianças em pleno desenvolvimento da liberdade criativa. Todo tipo de música deveria ser válida. Lembro que aos 11 anos, já dono de um Super Nintendo, gravei de forma muito tosca – posicionando frente a frente o falante da TV e o microfone do gravador – uma fita cassete com alguns dos meus hits prediletos dos jogos. Será que fui o único?
Claro que a força mundial avassaladora da indústria fonográfica e a grande tradição da música popular no Brasil foram os principais agentes para que todos pensássemos que as trilhas dos jogos eletrônicos eram outra coisa que não música. Tanto a indústria fonográfica quanto a canção popular no Brasil atingiam naquele momento sua apoteose. A internet, que faria desmoronar a indústria, era ainda um projeto de laboratório, e as teses sobre o fim da canção pareceriam extremamente equivocadas.
Mas o que é preciso chamar a atenção é que aquilo que escutávamos nas trilhas dos jogos de videogame era o desdobramento comercial da evolução da música eletroacústica. Mal sabíamos que estávamos ouvindo as notas da primeira grande democratização dos sons sintéticos. Talvez tenha sido o momento-chave da história em que os estudos avançados de música eletrônica das grandes universidades americanas (e japonesas) foram assimilados e disseminados pelas grandes empresas de games, antes mesmo da multiplicação dos jogos para PC e da recente ascensão da Apple. Há um interessante paralelo entre a evolução da música eletroacústica mundial e a evolução da canção popular no Brasil: dois enormes eventos musicais e sociais do século XX que corriam ao mesmo tempo e mal se esbarraram ao longo das décadas.
Retornando ao ano de 1985, em pouquíssimo tempo a memória dos chips dos videogames cresceria de forma assustadora, tornando as trilhas compostas em microchips de 8-bits tecnologicamente obsoletas. Hoje em dia, música original para videogame é um mercado milionário, assim como o das trilhas sonoras de Hollywood, e envolve compositores famosos e orquestras renomadas. Da mesma forma, há atualmente uma enorme facilitação tecnológica promovida pelos programas para gravar e fazer música. Em 2012, aprender a manipular música eletrônica é tão ou mais fácil que aprender a tocar violão. E aqui chegamos ao ponto nevrálgico da criação musical da “nova geração” que produz música no século XXI: de um lado a consolidação do formato da canção e, do outro, a plena democratização de todos os timbres que os ouvidos humanos foram capazes de captar. (Esses sons vão das notas da primeira flauta fabricada pelos homens ao barulho dos ventos da lua Titã de Saturno captados pela NASA, passando por tudo o que a humanidade foi capaz de ouvir e fabricar sonoramente em 35 mil anos de produção musical.)
A característica mais representativa da música dos videogames de 8-bits eram seus timbres originais, peculiares, resultado de sua tecnologia limitada. Outra restrição que se tornou marca desse tipo de música eram as composições estruturadas em loopings, ou seja, em repetições. No Super Mario Bros., por exemplo, os diferentes momentos do jogo são caracterizados pela duração de seus temas musicais. Em fases mais extensas os temas acabam sendo mais longos e os loopings ocorrem com menos frequência. Nos temas de confronto, mais críticos, os loopings são mais assíduos e os temas, mais curtos e frenéticos. Da tecnologia limitada, de poucos recursos, nascia uma estética musical singular.
Essas restrições nunca foram parâmetro para compor uma canção. A não ser que o desafio seja uma imposição do próprio compositor, evidentemente. Portanto, o que se aproveitou das trilhas sonoras em 8-bits para a canção em si não foram os loopings, mas sim os seus timbres. Recentemente, três compositores em especial, todos nascidos no final da década de 1970 (jogaram bastante videogame quando eram crianças), fizeram uso dos timbres específicos dos games na gravação de suas canções gravadas em 2012. Porém, a relação com videogame nessas canções não se limitou à sonoridade específica, e o universo dos games virou o principal tema de suas letras.
O compositor Dudu Tsuda
O paulista Dudu Tsuda, nascido em 1979, autor do álbum Le son par lui même, compôs em parceria com a pernambucana Lulina, também de 1979, a “Música para videogame brasileiro”. Dudu tinha a base da música com os timbres de 8-bits e Lulina fez a letra inspirada nesses timbres. A canção transpõe um enredo clássico de um herói de jogo eletrônico para as dificuldades do mundo automático da vida adulta.
Eu corro, corro sem saber
pra que fui programado
quando é que eu vou morrerMe fazem pular
me fazem atirar
eu sigo sempre em frente
sem parar para pensarSerá que eu sou controlado
por algum deus que aperta os botões?
será que sou recompensado
ou será que eu sou mais um dos vilões?
O compositor Jonas Sá
O carioca Jonas Sá, nascido em 1978, é autor da canção “8-bit”. Repleta de samples de trilhas sonoras de antigos jogos eletrônicos, a letra da canção (ainda inédita e prevista para ser lançada no disco Blam! Blam!, no primeiro semestre de 2013) fala da solidão do universo do mundo eletrônico através dos tempos e de suas telas brilhantes. Um desdobramento do eu-lírico que, quando criança, era um assíduo jogador de videogame.
A confusão lá fora se mistura
Aos gemidos gelados das mocinhas
Do meu computador
Tenho mais de mil amigos online
Mas o mais assíduo é a solidão
A última estrofe da canção remete ao vício eletrônico infantil, mas agora representado pelo “filho pequeno” que joga videogame enquanto o personagem principal da letra se conecta ao mundo real, via os desejos carnais da mãe desse filho. A descoberta de uma nova “diversão” que, de fato, não é eletrônica.
Filho pequeno jogando videogame ao lado
Sua mãe lambendo o meu corpo suado
E a magia começou…
Dudu, Lulina e Jonas, cada um a seu modo, fazem uso dos desafios musicais impostos ao século XXI. Recorrendo à nostalgia, com uma alta carga de angústia e incerteza nas letras, os três apontam uma maneira de lidar com o transbordamento dos timbres (produto do século passado) dentro da cultura da canção – que, segundo Zé Miguel Wisnik, é a maior contribuição cultural brasileira no século XX. Se ainda é cedo para quitar a herança musical dos mil e novecentos ou, ainda, se é necessário quitar tal herança em nome de um propósito ainda obscuro, é o que veremos.
* Mariano Marovatto é cantor, compositor e escritor. Apresenta e escreve o programa Segue o Som na TV Brasil. Seu site pessoal é www.marovatto.org