Até que enfim não vai ter Copa

Colunistas

11.06.14

O presidente Médici cumprimenta Pelé após a conquista do tricampeonato

Minha primeira reação à hashtag #nãovaitercopa foi de estranhamento. Custei a entender tratar-se de um gesto de recusa à Copa do Mundo de 2014 como um grande evento político, de rejeição a celebrar o Brasil como potência econômica mundial, recém-ingressa nos Brics, um ato de negar o nacionalismo que acompanha o futebol há tantos anos. Na história das Copas, e não apenas no Brasil, futebol, língua e política se confundem nos slogans das seleções, apelando para as cores da bandeira, a força – também usada nas guerras – e o orgulho nacional, como se pode ler em muitas das frases dos ônibus oficiais.

Em parte, minha dificuldade de compreensão vinha do fato de que, para mim, só houve uma Copa, a de 1970, quando ninguém podia dizer “não vai ter Copa”. Jamais assisti a uma Copa do Mundo e nunca me interessei por um jogo de futebol de qualquer time. Reconheço, seja por obras como as do antropólogo Roberto DaMatta e a do poeta José Miguel Wisnik, o futebol como fenômeno social e esclareço desde já que minha recusa ao jogo não tem nada a ver com falso elitismo. É mais fácil associar meu desinteresse aos estereótipos de gênero com os quais cresci. Contra a maioria deles, até me rebelei. O desgosto pelo futebol ficou, legado da Copa de 1970.

Mas até que, para quem não gosta, guardo na memória alguns acontecimentos marcantes: uma desclassificação em 1986, quando os jogos eram, para mim, apenas um ótimo pretexto para sair do trabalho mais cedo; uma vitoriosa disputa de pênaltis em 1994; um vexame no jogo final na França, em 1998. Além desses episódios isolados, minha memória só registra a Copa de 70, o tricampeonato e a estranha mistura entre o silêncio da opressão do regime militar com o grito de “pra frente, Brasil”. Por tudo isso, #nãovaitercopa me remeteu diretamente à experiência de uma Copa que não deveria ter havido, e que só houve porque nos foi imposta pela ditadura.

De 1970, não tenho lembrança dos jogos. Era criança, não vi as partidas de futebol. Só vi os adultos assistindo à Copa. Minhas recordações misturam os gritos de gol e a euforia da festa do tricampeonato com os silêncios forçados sobre a tortura, as mortes, os desaparecidos nos porões sangrentos comandados pelo general Emílio Garrastazu Médici. Dele, nas minhas reminiscências infantis daqueles anos de chumbo, guardo a imagem de uma cena em preto e branco, o general com o rádio de pilha colado ao ouvido, no velho Maracanã, enquanto em casa, meu pai – torcedor do Flamengo como o presidente – amaldiçoava a ditadura mais do que a derrota do seu time.

Com #nãovaitercopa, a história que nos impuseram na memória sobre a Copa de 1970 pode enfim começar a ser desconstruída. Como ensina a filósofa Jeanne Marie Gagnebin (Unicamp) em lindo artigo publicado em “O que resta da ditadura” (Boitempo Editorial, organização de Vladimir Safatle e Edson Teles), há uma imposição de esquecer como “gesto forçado de apagar e de ignorar, como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida no passado”. Impor o esquecimento significa, por isso, impor uma única maneira de lembrar. Foi o que fez a nossa Lei da Anistia, cuja bem-vinda revisão está recém-aprovada no Senado.

Conquista da luta contra o não-esquecimento forçado, o governo federal instituiu a Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012, saudada como uma oportunidade única de esclarecimento dos casos de tortura, morte e desaparecimento durante o regime militar. Apenas um mês depois, entrou em vigor a Lei Geral da Copa – aquela a que recusamos com #nãovaitercopa. Enquanto em 150 páginas a Lei da Copa estabelece um regime de exceção e dá amplos poderes à Fifa – o novo FMI, como percebeu o jornalista Arthur Dapieve –, a CNV enfim abre as janelas dos porões para questionar os longos 30 anos de exceção que nos acostumamos a chamar de ditadura.

A CNV, apesar de seus limites, nos tem permitido confrontar os fantasmas do passado, movimento único e necessário em direção a um estado de direito, elaboração “do que resta da ditadura”. Sua criação faz parte do que o filósofo Jacques Derrida classificou de “política da memória”, relacionada a três critérios essenciais: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição, e à sua interpretação. Derrida acompanhou de perto os trabalhos da Comissão de Reconciliação na África do Sul pós-apartheid e foi um pensador militante do tema do perdão, tema da sua última conferência, realizada no Rio de Janeiro em 2004 pouco antes de sua morte. Naquele momento, o Brasil ainda fazia silêncio sobre a impossibilidade de perdoar os crimes de morte e tortura do regime de exceção. A criação da Comissão Nacional da Verdade tornou-se a primeira parte da possibilidade de acesso ao arquivo e sua reconstituição, porque só fazendo as pazes com o passado se pode caminhar rumo ao que Nietzsche chamou de “dimensão feliz do esquecimento”, alegria que nos permite não mais carregar o passado como um peso – ou como um chumbo – e nos leva a inventar outras figuras de vida no presente, como a força contestatória nas redes sociais com #nãovaitercopa.

Já a Lei Geral da Copa chegou para instituir o estado de exceção promovido pela Fifa em nome da associação entre interesses políticos e financeiros que pautam a realização dos jogos de futebol e, principalmente, a movimentação do capital em direção aos países-sede. Se nos anos 1970 a exceção era política, hoje a exceção é econômica, ditada pelos interesses do capitalismo global, que estabelecem as novas regras do silêncio.

Por isso, a partir das 17h deste 12 de junho, quando no gramado do Itaquerão, em São Paulo, o juiz apitar o início da partida Brasil x Croácia, alguns de nós assistiremos a um conjunto de jogos de futebol distribuídos em 12 cidades e organizados em etapas até o jogo final, no irreconhecível Maracanã. Essa Copa do Mundo, com sua sucessão de partidas em direção a um jogo final, vai acontecer. Eu não vou assistir, como nunca fiz, mas vou me juntar alegremente ao #nãovaitercopa, grito entalado na garganta desde 1970, ressignificação da Copa de 2014, clamor por uma nova interpretação do tal país do futebol

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