A impossibilidade de se falar sobre Auschwitz

Literatura

22.07.13

Auschwitz (Crédito: Bruno Mattos)

“É indescritível a oportunidade de visitar um lugar desses, não é?”, comentou com um sorriso no rosto outro brasileiro que eu acabara de conhecer ali mesmo, em Auschwitz.

Olhei ao nosso redor. A uns dez metros de distância havia um grupo com uns quinze adolescentes. Tiravam fotos amontoando-se uns em frente aos outros para garantir um lugar no primeiro plano, fazendo caretas para a câmera e sinais de paz com as mãos. Riam alto, como se não soubessem muita coisa sobre o lugar onde estavam. Seu barulho somava-se às falas de outros grupos e ao ruído dos calçados se arrastando pelos caminhos de chão batido, tornando impossível compreender o que a guia de turismo à nossa frente estava dizendo.

Auschwitz, para a minha surpresa, abrigava a mesma rotina de um ponto turístico qualquer, como uma igreja antiga, um palácio luxuoso ou um museu. Quais seriam as implicações disso?>

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Em É isso um homem?, talvez o mais importante relato escrito sobre a vida dos prisioneiros de Auschwitz, Primo Levi ressalta constantemente a dificuldade de descrever os meses que passou no campo de concentração. O frio e a fome sentidos pelos prisioneiros, ele explica, iam muito além das sensações que o leitor comum é capaz de associar às palavras “frio” e “fome”:

Aquelas são palavras livres, criadas e usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega.

Para além do valor documental, a obra do escritor italiano destaca-se justamente por ter sido construída em cima deste paradoxo: embora reconheça que as palavras de que dispomos são insuficientes para transmitir a experiência de Auschwitz, Levi insiste que é fundamental que se tente falar sobre esta experiência. Somente assim, ele aponta, será possível alertar os homens livres, no presente ou no futuro, para que “procurem não aceitar em seus lares o que aqui nos é imposto”.

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Depois de Primo Levi, muitos outros autores exploraram o tema da impossibilidade de se transmitir a realidade dos campos de concentração por meio da escrita, tornando esta uma questão central em suas obras e, de certa forma, escrevendo romances sobre a dificuldade de narrar. Um exemplo é Diário da Queda, de Michel Laub.

Aos treze anos de idade, o narrador-protagonista frequenta um colégio para judeus. Assim como todos os colegas, está habituado a discutir o holocausto em aula e leu É isto um homem? ainda jovem. Como seu próprio avô (que ele nunca chegou a conhecer) é um sobrevivente de Auschwitz, o tema também é tratado no âmbito familiar.

A vida do narrador é transformada por um episódio transcorrido durante a festa de aniversário de João, o único garoto não judeu da classe. Em uma brincadeira mal-intencionada, ele e os colegas atiram o aniversariante para cima e, deliberadamente, deixam-no cair estatelado no chão. Anos mais tarde, o narrador relembra o incidente e afirma:

“Se na época perguntassem o que me afetava mais, ver o colega daquele jeito ou o fato de meu avô ter passado por Auschwitz, e por afetar quero dizer sentir intensamente, como algo palpável e presente, eu não hesitaria em dar a resposta.”

Ou seja: a grande quantidade de informações de que o narrador dispunha sobre o tema, as histórias sobre o longo definhamento psicológico e emocional do avô nos anos após ter saído do campo e as conversas que tivera com o pai a respeito não bastaram para transformar Auschwitz em um sentimento tangível para ele.

A situação se alteraria no ano seguinte. Tendo se tornado próximo de João e perdido a amizade dos demais colegas por denunciar à diretoria do colégio a travessura de que fizera parte, ele muda de colégio na companhia do único amigo que lhe resta. A boa relação entre os dois não sobrevive à transferência, e o narrador se envolve em uma troca de bilhetes carregados de ódio com o colega. A compreensão dos terrores do nazismo e de Auschwitz, que ele nunca alcançara por meio dos relatos de segunda mão, finalmente chega por meio desta experiência traumática que, na superfície, não tinha nenhuma relação com tais assuntos.

[…] porque o sofrimento se esgota na primeira ou na segunda ou na terceira vez em que você narra as atrocidades […] os funcionários pegaram um a um desse milhão e meio de adultos de trinta quilos, e caminharam ao lado de um a um desse milhão e meio de adultos de trinta quilos, e abriram a porta da câmara, e abriram a torneira que fazia sair o gás na câmara onde um a um desse milhão e meio de adultos de trinta quilos estavam, você pode repetir isso até cansar porque nunca mais vai sentir o que sentiu aos catorze anos […] e ter pela primeira vez noção do que tudo isso significava.

 

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Eu não soube o que responder à pergunta do outro brasileiro que conheci em Auschwitz.

É, sim, indescritível – mas não da maneira como eu imaginava. Quando decidi fazer uma visita em 2012 ao memorial instalado no campo, me preparei durante meses. Tinha receio de ir sozinho, receio do que sentiria em um local que representa, nas palavras de Claude Lanzmann (diretor de Shoah, um dos mais importantes documentários sobre o holocausto), “um passado cujas cicatrizes estão ainda tão frescas e vivamente inscritas nos lugares e nas consciências que ele se dá a ver numa alucinante intemporalidade”.

Mas, chegando lá, encontrei algo diferente: ao invés de uma reflexão solitária sobre, como Laub coloca tão precisamente, “a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares”, a visita me proporcionou a mesma sensação que se tem ao assistirmos a um filme triste no cinema. Como se os dados fornecidos pelos guias (só se pode fazer a visita juntando-se a um grupo guiado) por meio de suas falas decoradas e proferidas dia após dia no mesmo tom medidamente triste não se referissem ao que realmente ocorreu em Auschwitz.

Judit, personagem do romance Liquidação, do húngaro Imre Kerstész (que, como Levi, também esteve em Auschwitz), passa por uma situação análoga. Quando vai até o campo durante uma visita à Polônia, em uma tentativa de compreender o imperscrutável B. (seu marido judeu nascido ali mesmo, no campo), ela não encontra a atmosfera que esperava.

Pessoas se acotovelavam pelos caminhos. Mulheres, homens, crianças. O sol brilhava cinzento por trás dos véus das nuvens. Compramos ingressos. Fui tomada pelo pressentimento dos empreendimentos malsucedidos. Ali estava tudo o que eu conhecia por fotografias. A inscrição do portão, as cercas de arames farpados estendida entre os postes curvados, os edifícios de pedra de um andar – tudo causava um efeito de cópia do original. Não consegui entrar no clima para o qual me preparara durante dias.

É difícil encontrar a razão exata desta sensação de “cópia do original”, da qual compartilho, mas acredito que esteja intimamente ligada à impossibilidade de converter Auschwitz em narrativa, explorada nos três livros citados, e que parece atingir seu ápice no roteiro das visitas guiadas ao antigo campo.

Pois, em nossa cultura, Auschwitz é ainda mais do que a soma de todos os horrores perpetrados em Auschwitz; é ainda mais do que as centenas de milhares de pessoas que saíram dali para serem executadas em câmaras de gás; é ainda mais do que aquilo que Levi apontou como a maior de todas as ofensas, a aniquilação de um homem em sua subjetividade. Auschwitz é também o símbolo do que houve de pior no nazismo – que, por sua vez, é o símbolo do que de mais terrível um homem foi capaz de exercer sobre outro em nosso tempo.

Diante desse contexto, tornou-se consenso que devemos ter acesso à maior quantidade possível de informações a respeito das atrocidades ali cometidas e repassá-las às próximas gerações para que nunca se esqueça (e mais uma vez remeto a Levi) “o que o homem chegou a fazer do homem”. Mas embora isso seja fundamental, como vemos em Diário da Queda, não é o suficiente: a única maneira de se compreender Auschwitz e todas as suas implicações é a partir da própria vivência. Afinal, da mesma maneira como não serviam para descrever a experiência de Levi em sua plenitude, nossas palavras também não são suficientes para dar conta de Auschwitz em toda sua dimensão simbólica.

Auschwitz (Crédito: Bruno Mattos)

Voltamos assim à pergunta do início: quais as consequências de transformar o antigo campo em uma atração turística convencional, propondo uma mesma chave de leitura a todos os seus visitantes?

Os sintomas dessa transformação são visíveis: em diversos sentidos, percebe-se que um processo de higienização foi levado a cabo para que Auschwitz, o campo de concentração, pudesse ser convertido em Auschwitz, o memorial. Damo-nos conta de que o local vem sendo reformado ano após ano, para que não envelheça: há cercas de arame farpado que não aparentam ter mais de um ano de idade, galpões reformulados para abrigarem lojas de suvenir, estradas de chão ajeitadas, placas informando a conduta esperada dos turistas. Não coma hambúrgueres. Não beba refrigerantes. Não traga seu animal de estimação. Estamos em um local preparado para receber visitantes. Vem daí, também, a sensação de cópia do original a que o livro de Kerstész refere.

Com isso, a visita ao local passa longe de ser uma experiência indescritível. Antes, revela-se bastante semelhante para todos os que a vivenciam. Seu roteiro estrutura-se ao redor das palavras e do percurso impostos pelos guias de visita, que estão ali justamente para direcionar a interpretação dos visitantes e garantir que todos saiam com as mesmas impressões, que sofram de uma mesma maneira predeterminada. Por trás desse procedimento aparentemente inofensivo (afinal de contas, é algo repetido à exaustão em locais de interesse turístico em todo o mundo), acredito que se esconda um grande risco. Ao comprimir-se um episódio histórico desta dimensão em uma narrativa com menos de uma hora de duração, de assimilação pretensamente fácil e imediata, submete-se o maior dos horrores a uma simplificação violenta e danosa. As implicações de Auschwitz perdem a força ao serem exprimidas em palavras pequenas demais para contê-las, e o visitante pode deixar o memorial com a impressão de que já compreendeu tudo e o assunto está encerrado.

Mas como já foi dito, devido à sua carga simbólica, Auschwitz não deve jamais se encerrar no fato histórico. É um assunto que resiste ao espetáculo por ser incompatível com sua natureza rasa e massificante. Há quem recomende a visita exclusivamente aos domingos pela manhã, único turno da semana em que o visitante tem liberdade para transitar pelo espaço com total liberdade, como uma forma de resposta. Talvez seja uma solução. Também há quem indique a visita solitária, mais propícia às reflexões e avessa ao espetáculo. Também é uma estratégia válida. O mais importante é que haja algum tipo de resistência consciente, que não se aceite de nenhuma maneira a ideia de que Auschwitz possa estar devidamente representado naquela visita.

Se não for assim, condenamos o local ao esquecimento – a tornar-se, em trinta ou quarenta anos, um nome tão esvaziado de significado quanto já são outros campos de concentração nazistas, como Majdanek, Sobibor ou Belzec. Seria também deixar de aprender com um dos maiores erros da história da humanidade. Seria, em última instância, não prestar o devido respeito aos seis milhões de judeus e aos outros catorze milhões de pessoas que perderam suas vidas.

* Bruno Mattos é  tradutor e editor da revista Cadernos de Não Ficção.

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