Cannes. Na competição, um quase noivo de Baleia, o cachorro Roxy, e a quase mariée de Marcel Duchamp mise à nu por Jean-Luc Godard, même. A ideia de Adieu au langage (Adeus à linguagem) é simples, esclarece o diretor num breve texto à maneira de sinopse no livreto distribuído como material de divulgação: “Uma mulher casada e um homem solteiro se encontram, se amam, se desentendem, os corpos choram. Um cachorro vaga entre a cidade e o campo. As estações passam. O homem e a mulher se reencontram, o cachorro se encontra entre eles. O outro está dentro de um, o um está dentro do outro, essas são as três pessoas”.
Cena de Adeus à linguagem
Na verdade, nenhuma direta relação entre a personagem de Vidas secas e seu quase noivo de Adeus à linguagem. Mas a presença do cachorro como um dos protagonistas do filme traz à memória a inclusão de Vidas secas na lista dos melhores do ano feita para o Cahiers du Cinéma, em 1965. Roxy traz ainda à memória que, em 2004, aqui mesmo, em Cannes, indagado sobre os novos cinemas da década de 1960, Godard apontou Vidas secas como um filme que permanecia novo – um dos raros, sublinhou.
Nenhuma direta relação, nenhuma referência direta, mas Roxy, como Baleia, é um cachorro que pensa. Tal como no livro de Graciliano, o narrador do filme de Godard entra na cabeça do cachorro para traduzir seus pensamentos. Roxy pensa que não se pode pensar livremente se os olhos não veem em liberdade. Que não se pode ver em liberdade se pensamos enquanto vemos. Que as pessoas saem de si mesmas e da realidade em que se encontram enquanto pensam e assim se dividem em duas: uma pessoa que é e uma pessoa que é só pensamento.
Nenhuma relação direta com a noiva de Roxy, mas uma estreita relação com a noiva de Marcel Duchamp, a mariée despida por seus celibatários, mesmo ou O grande vidro. Quando aparece despida pela primeira vez por Godard, a mariée de Adeus à linguagem desce aquela mesma escada do nu de Duchamp.
Para compor os diálogos de Adieu au langage, Godard se serve uma outra vez de um procedimento ao mesmo tempo próximo da ideia do ready made de Duchamp e do natural processo de compor e montar imagens cinematográficas – – enquadramento e montagem. As falas são recortadas de livros tal como as imagens são recortadas de cenários reais ou dos corpos dos atores. Na montagem, aqui como em tudo quanto é filme, falas e imagens ganham novos sentidos sem deixar de se referir à realidade objetiva ou subjetiva de onde foram extraídas. Por isso mesmo, em dois ou três momentos o narrador se pergunta onde começa a metáfora e termina a realidade.
Relação direta com O grande vidro de Duchamp também pelas muitas transparências das imagens em 3D. Adeus à linguagem tem pouco a ver com os habituais efeitos de profundidade dos filmes em terceira dimensão. Não se serve dos pequenos truques visuais em que algo atirado na direção da câmera tenta provocar ilusão semelhante à que, no nascimento do cinema, desabou sobre a plateia que viu o trem de Lumière saltar da estação para dentro da sala de projeção. Na tela, de fato, um adeus à prática corrente do 3D e um estreito diálogo com o quadro em três dimensões de Duchamp, vidro e não tela, ao mesmo tempo o que está nele e o que se pode ver através dele.
A câmera por trás do vidro do carro, o olhar é solicitado a um permanente deslocamento da paisagem no fundo da imagem para a água no para-brisa, espécie de cortina ou biombo que encobre as árvores ao fundo, ou da estrada para o limpador de para-brisa, um segundo biombo correndo de um lado para outro do quadro. Nas fusões, uma idêntica sensação de vertigem visual, pois a vista se acomoda pouco à vontade sobre as duas superpostas e conflitantes ilusões de profundidade. Fusões de imagens e também nos letreiros, como os que reescrevem o título original colando em primeiro plano duas letras grandes e vermelhas. Adieu transforma-se então em AH Dieux (Ah! Deus), e au langage transforma-se então em OH langage (Oh! linguagem). Vidro, fusões, Duchamp e mais a lembrança de Claude Monet: “Em lugar de pintar o que se vê, pois de fato não vemos nada, pintemos o que não se vê”.
Na imagem, frases visuais. Nas falas, imagens verbais. Filmar o que não se vê: o azul no céu, mas não como o azul do céu, o vermelho na flor mas não como o vermelho da flor, o amarelo das folhas de outono, mas com um brilho e calor diferente das folhas de outono. Enquadrar as palavras para inseri-las numa outra ordem, pela montagem:
Deus não pode nos fazer humildes, ou não soube nos fazer humildes, por isso nos fez humilhados.
Ah! Deus, hoje todo mundo tem medo.
Renuncie à liberdade e conseguirá tudo.
Essa manhã é um sonho e cada um pensa que o sonhador é o outro.
Não direi quase nada, procuro a pobreza da linguagem.
Assim como aqui e ali um realizador adapta um livro ou numa peça de teatro para cinema, quase é possível dizer que em Adeus à linguagem Godard faz uma adaptação da Mariée mise à nu par ses celibataires même para o cinema. Uma ideia simples, uma mulher casada um homem solteiro, o reencontro e o encontro com um cachorro, para compor um filme em que o 3D passa na tela como uma imagem no vidro dianteiro de um carro em movimento num dia de chuva.
Alguns filmes do festival estiveram especialmente voltados para os problemas contemporâneos. A injustiça social e a falta de emprego na Europa, como Deux jours, une nuit (Dois dias, uma noite), de Jean Pierre e Luc Dardenne, e Jimmys’ Hall (O salão de Jimmy), de Ken Loach, ou o extremismo religioso e a violência na África, Timbuktu, de Abderrahmane Sissako. A entrada de jovens num mundo adulto dividido entre a vontade de viver em harmonia com a natureza e a pressão de desenvolvimento econômico, Le meraviglie (As maravilhas), de Alice Rohrwacher, e Futatsume no mado (A segunda janela), de Naomi Kawaze. As relações entre o artista e o intelectual e os trabalhadores comuns, Mr. Turner, de Mike Leigh, e Kis Uykusu (Sonho de inverno), de Nuri Bilge Ceylan. Mas um apenas tomou como tema, trouxe para o centro da discussão, a luta comum a todos esses em busca da imagem capaz de expressar o sentimento de cada um, apenas um, o de Godard, que visto assim, à distância, antes de chegar a uma de nossas salas de cinema, revela melhor o que é quando em lugar do título original usamos as duas exclamações e trocadilhos montados pelo diretor no meio da narrativa: Ah! Deus, oh! a linguagem.