A pedrada de Sissako e o grunhido de Leigh

Cinema

19.05.14
“Timbuktu”, de Abderrahmane Sissako


Cannes.
Na abertura, uma ficção feita quase sob medida para o festival. Livremente inspirada em fatos reais, Grace de Mônaco prossegue uma história iniciada em Cannes: em 1955, o príncipe Rainier conheceu Grace Kelly durante o festival, na apresentação de Ladrão de casaca (To catch a thief), de Alfred Hitchcock. Casaram-se no ano seguinte. A atriz abandonou o cinema para tornar-se Sua Alteza Sereníssima, a Princesa Grace de Mônaco. O filme do francês Olivier Dahan começa seis anos depois, em 1962, com Grace recebendo um convite para voltar a Hollywood e Rainier, a informação de que Charles De Gaulle pretendia anexar Mônaco ao território francês.

Se o espectador sabe algo do casamento de Grace com Rainier, se guarda na memória um pouco da imagem criada em torno dele, a de um conto de fadas que se tornou realidade, poderá acompanhar mais facilmente a narrativa iniciada com a chegada de Alfred Hitchcock a Mônaco para convidar Grace a estrelar seu próximo filme, Marnie. E tudo se torna ainda mais fácil se ele conhece os filmes de Grace com Hitchcock, Disque M para matar, Janela indiscreta e Ladrão de casaca, e o que ela não chegou a fazer com ele, Marnie. Temos, de fato, mais reencenações de imagens desses filmes de Hitchcock do que reconstituições de fatos realmente acontecidos em 1962 em torno de Grace e de Rainier

O conflito entre a França e Mônaco fica no fundo da cena. Mais importante que a história contada é o modo de contar, a narração à maneira da Hollywood do tempo de Grace e Hitch.

A economia enfraquecida com a guerra na Argélia, o governo francês pensa em anexar Mônaco e cobrar impostos de seus cidadãos. O casamento enfraquecido pela rotina da vida em palácio, Grace pensa em voltar para o cinema. Esses conflitos tomados como uma espécie de moldura, a imagem propriamente dita dedica-se a reproduzir um diálogo de Marnie, uma corrida de automóvel de Ladrão de casaca, um plano de Janela indiscreta e, ainda Hitch embora sem Grace, um penteado de Um corpo que cai. Hitchcock abre o filme, aparece pouco em cena daí em diante, mas ao telefone diz para Grace o que ela deve fazer para solucionar a crise política com a França e levar o filme e a crise a um happy end: ela deve permanecer todo o tempo em quadro.

As referências a filmes de Hitchcock não resultam de uma exigência interna da história nem a realização soube tirar proveito do modelo imitado. São, gesto automático, um convite para rever o já visto na Hollywood do passado. Um esforço para adaptar os fatos às convenções do cinema industrial de outrora, uma tentativa de retomar um modelo de narração com regras estabelecidas antes e independentemente do que será narrado. Como manda o figurino, a cena se explica por inteiro nos diálogos e na ação imediatamente visível e – sob a desculpa de manter a clareza de exposição – nenhuma ambiguidade ou contradição. Os personagens se definem, mesmo antes de falar ou agir, pelo desenho tipificado, pela máscara ou caricatura que portam.

Um pequeno exagero na representação no Rainier de Tim Roth e na Grace de Nicole Kidman. Exagero maior nos personagens secundários: Hitchcock, Onassis, Maria Callas, Robert McNamara e De Gaulle estão mais próximos dos clichês do cinema do tempo de Ladrão de casaca que de um retrato minimamente fiel de qualquer desses personagens reais.Talvez, graças à cumplicidade da plateia na abertura de um festival de cinema, um filme como Grace de Mônaco pode parecer menos desinteressante do que efetivamente é quando visto como convite para ver o que fato começa depois da festa inaugural. Cinema de verdade, em Cannes, começou no dia seguinte, com a apresentação de Timbuktu, de Abderrahmane Sissako, e com Mr. Turner, de Mike Leigh.

Sissako realizou seu filme sob o impacto da violência ocorrida em julho de 2012 num vilarejo do Mali. Um casal condenado à morte por pedradas foi executado diante de seus dois filhos. O crime: eles não eram oficialmente casados. Não é essa a história contada no filme – ela é apenas mencionada numa única sequência – mas Timbuktu nasceu dela, como um grito de revolta. “Impossível permanecer indiferente em face a uma brutalidade tamanha, é preciso gritar de algum modo para evitar que no futuro outras crianças venham a sofrer coisa igual: ver seus pais assassinados porque se amam”, disse Sissako no debate depois da projeção.

Na tela, o dia a dia de um vilarejo ocupado por extremistas religiosos: roupas coloridas são proibidas; as mulheres devem cobrir a cabeça, usar roupas e luvas escuras; vendedora de peixe no mercado protesta (como pegar o peixe com luvas?) e vai presa. Rir ou falar em voz alta nas ruas está proibido. Música está proibida. Futebol está proibido. Ninguém pode fazer ou ouvir música. Ninguém pode ter uma bola de futebol em casa. Armados, os extremistas perseguem uma bola quicando na rua ladeira abaixo. Comunicam-se todo o tempo por telefones celulares e, ouvidos atentos, sobem nos telhados das casas para descobrir quem canta ou toca um instrumento. Num terreno abandonado os jovens jogam futebol às escondidas, sem bola, chutando o chão, levantando poeira, o goleiro saltando para um defesa imaginária, o atacante comemorando um gol imaginário, tudo em silêncio, em absoluto silêncio. Dentro de casa, música sussurrada. Na rua, a mulher presa porque cantava é castigada com 80 chicotadas.

Nas dunas, à margem do rio, fora da cidade, uma briga entre vizinhos. O pescador Amadou mata GPS, a vaca preferida do pequeno rebanho de Kidane. Na briga, Kidane mata Amadou. É preso e condenado à morte. A partir de então, o filme se concentra em prisão, interrogatório, julgamento e execução de Kidane. No tribunal improvisado, a comunicação é impossível: acusado, testemunhas e interrogadores falam línguas diferentes: bambara, alguns; árabe, outros; francês, inglês, sonrhay ou tamasheq, outros mais. Os tradutores, a rigor, não falam nenhuma língua corretamente. Nessa conversa impossível, a tragédia e o absurdo da situação chegam ao espectador como pedradas na cabeça.

Já as imagens de Mike Leigh chegam aos olhos como composição feita quase só de delicadeza, colorido suave e bom equilíbrio no desenho do quadro. Por trás da aparência gentil, é verdade, uma boa dose de ironia e uma amarga sugestão de uns tantos desastres e desentendimentos no mundo da primeira metade do século XIX. Mr. Turner não é propriamente uma biografia do pintor J.M.W. Turner, mas uma ficção inspirada na vida e no trabalho do pintor para propor uma reflexão sobre a arte e sobre os conflitos do artista com o seu tempo.

Passagens bem conhecidas da vida de Turner estão no filme, mas como informações ligeiras.

Umas poucas imagens resumem a rivalidade entre Turner e Constable no episódio da Royal Academy em 1832. A paisagem marinha que Turner levou à exposição, Helvoetsluis, pareceu-lhe quase descolorida em comparação com o quadro a seu lado, The opening of the Waterloo Bridge, de Constable. Por isso, na véspera da abertura ele acrescentou um detalhe na pintura já terminada: uma pequena mancha vermelha, uma boia. A intervenção de último instante provocou um comentário irônico de Constable: “Turner esteve aqui e disparou um tiro”.

Tempestade de neve pintada por Turner

Um único plano conta a discutida história da tempestade de neve pintada em 1842. O titulo original é longo e traz uma indicação precisa: Snow storm – Steamboat off a harbour’s mouth making signals in shallow water, and going to the lead. The author was in this storm on the night the Ariel left Harwich. Como sugere no título, Turner garante ter estado lá, amarrado durante quatro horas no mastro do vapor para contemplar a tempestade. No filme, as quatro horas se resumem num plano de curta duração, o rosto do pintor amarrado em meio à tempestade.

Na verdade, no rosto do pintor vemos também o contracampo. “Voltei a câmera para nós mesmos – explica Leigh -, para nós que tentamos ser artistas, nós que tentamos mostrar às pessoas o que significa viver em nosso planeta, a beleza épica e o drama terrível da vida. Todos tentamos, poucos conseguem.” Tal preocupação faz de Mr. Turner tanto um filme sobre o pintor e a época em que ele viveu (1775-1851) quanto sobre um artista de hoje, que se dedique ao cinema, por exemplo. Sobre os conflitos do artista com os materiais e as exigências próprias de seu meio de expressão, com a crítica, com o público, sobre a admiração/competição com outros artistas, com o dia a dia.

É provável, por isso, que, assim como enquanto se preparava para a filmagem Timothy Spall colou os olhos na pintura de Turner, diante da câmera tenha colado os ouvidos na voz de Leigh. “A primeira coisa que fiz – contou no debate após a projeção – foi passar a pintar”, para compreender como Turner pintava – “a beleza e o horror da natureza, ele pintava com as vísceras”.

O que não se mencionou no debate, mas logo pôde ser percebido nas falas do ator e do diretor, é que Spall, no filme, usou o modo de falar de Leigh como modelo para compor a voz e os constantes grunhidos com o que Turner expressa algo que não cabe numa palavra ou esconde alguma coisa que não quer dizer. Diante do quadro de Constable, um grunhido. Diante do relato do ocorrido num navio negreiro, um grunhido. No meio da tempestade de neve, um grunhido. Outros mais diante da curiosidade da senhora Booth, das recomendações do médico, da solicitude da empregada, ou da observação do crítico. Spall inspirou-se no que disse Leigh, voltar a câmera para nós mesmos, para voltar o microfone para nós mesmos. Seu Turner fala com a dicção meio engolida e com os grunhidos (na verdade, menos frequentes e mais suaves) de Leigh. O filme sobre o artista no tempo de Turner, assim, passa a ser também um filme sobre o artista no tempo de Leigh.

“Era anárquico, vulnerável, irregular e às vezes rude”, Leigh define Turner. “Era egoísta e dissimulado, mas ao mesmo tempo generoso, capaz de gestos poéticos e de grande paixão. Meu filme é sobre as tensões e contrastes entre as imperfeições desse homem e sua obra, entre sua força e sua fragilidade. Todos nós tentamos ser artistas, e apesar de muitos esforços, poucos conseguimos. Turner conseguiu.”

Sissako, voltando a câmera para um grito de dor, e Leigh, grunhindo para câmera voltada para ele mesmo, também.

Veja o trailer de Mr. Turner:

José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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