A tragédia de Elias e o corpo de Olivia

No cinema

06.11.15

Na definição luminosa de Italo Calvino, “um clássico é um livro que não terminou de dizer o que tinha a dizer”. O cineasta brasileiro Vinicius Coimbra parece empenhado em comprovar a asserção do escritor italiano. Depois de filmar uma nova versão de A hora e a vez de Augusto Matraga (2011), agora ele traz Macbeth ao nosso tempo e circunstância em A floresta que se move.

Não se trata de uma empreitada fácil e sem riscos. Como mostrar a atualidade e pertinência da poderosa tragédia shakespeariana num mundo reificado e prosaico, aparentemente desprovido de densidade, de grandeza, de páthos?

Coimbra optou por uma espécie de solução de compromisso: manter os dilemas humanos centrais da peça – ambição, lealdade, traição, culpa –, envolvendo-os porém numa roupagem contemporânea, não apenas no que diz respeito à ambientação espacial e temporal, mas também à linguagem narrativa, à forma do relato.

Para isso, situou a trama nas altas esferas do mundo das finanças – a direção de um grande banco – e estruturou-a como um suspense policial. A primeira opção é criativa e pertinente: em nosso tempo, as lutas encarniçadas pelo poder dão-se nas cúpulas corporativas; grosso modo, a cadeira de presidente de um grande banco ou conglomerado financeiro corresponde ao que representava em outras eras um trono de monarca.

Da tragédia ao suspense policial

O personagem que corresponde ao Macbeth original, Elias (Gabriel Braga Nunes), é um alto executivo do fictício “maior banco privado nacional”. Atiçado por sua bela e ambiciosa esposa, Clara (Ana Paula Arósio), ele se dividirá entre os escrúpulos morais e o desejo de ascender ao posto de seu amigo e mentor Heitor (Nelson Xavier), presidente da instituição. Seu velho amigo César (Ângelo Antônio), também diretor do banco, fará as vezes do incômodo Banquo da peça de Shakespeare.

Nessa transposição quase integral do enredo original, algumas soluções narrativas são, a meu ver bastante felizes, como por exemplo a transmutação das bruxas da peça numa aluada rendeira meio new age. A própria cena prometida no título do filme – que faz o espectador perguntar-se como se realizará o prodígio encenado na tragédia – tem uma resolução engenhosa e cheia de significados possíveis.

Mais problemática é a adoção de uma cenografia ostensivamente clean, de uma dramaturgia convencionalmente realista e dos códigos narrativos do gênero policial. Com isso, frequentemente a tragédia se rebaixa a drama burguês, com sua exibição um tanto supérflua de signos de riqueza: iates, piscinas, mansões modernosas, carrões, carpetes silenciosos, serviçais discretos. De quando em quando, porém, debaixo da elegância fria desses vidros e mármores todos, vibra a grandeza humana shakespeariana. A presença do sangue, anunciada sutilmente já na primeira cena, será essencial para isso.

Olmo e a gaivota

Se em A floresta que se move o trânsito essencial é entre literatura e cinema, em Olmo e a gaivota a fronteira que se rompe é entre ficção e documentário, entre registro e encenação. O filme, dirigido a quatro mãos pela brasileira Petra Costa e pela dinamarquesa Lea Glob, documenta, em princípio, o dia a dia de um casal de atores do Théâtre du Soleil, Olivia Corsini e Serge Nicolaï, desde o momento em que eles descobrem que ela está grávida.

A gravidez surge quando os dois se preparam para atuar numa montagem itinerante de A gaivota, de Tchekhov. O filme acompanha então os dilemas do casal, sobretudo de Olivia, enquanto a gravidez avança e os ensaios para a peça se intensificam. O aspecto “bruto” da filmagem com câmera na mão, sempre muito próxima dos personagens, quase como num home movie, reforça o substrato de realidade, mas a todo momento somos lembrados de que se trata de personagens/atores e que pode haver muito de representação, de atuação, no modo como se mostram diante da “objetiva” (nunca a palavra foi tão irônica).

Há, porém, um limite intransponível para essa eventual representação ficcional: o corpo de Olivia. Acompanhamos o crescimento de sua barriga, as transformações de seu organismo, as alterações na sua pele. Embaralham-se então flashes do cotidiano, registros de ensaios, fragmentos de filmes domésticos do passado, discussões calorosas do casal (que podem ou não ser encenadas), num contínuo e estimulante entrechoque entre ficção e realidade, entre teatro e cotidiano, com o cinema surgindo como o lugar em que essas coisas se fundem. Pode-se não gostar de Olmo e a gaivota, mas não há como negar que se trata de um filme singular e, no sentido preciso do termo, extraordinário.

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