Armadilha para Ana Cristina

Literatura

06.01.14

Querido L.,

Essa nova edição da poesia de Ana Cristina Cesar está bonita que é um desperdício. Ou pode ser. Depende de você, L. Assim que aparecer um leitor, cada exemplar do livro deixará de ser só mais uma mercadoria atraente exposta no mercado.

Mas há razões para crer que muitos livros tenham mais compradores do que leitores. Uma garota não precisa realmente ler Ana Cristina Cesar para tatuar numa perna aquela foto famosa dela, de óculos escuros. Assim como não preciso pegar em armas para usar a sunga do Che Guevara.

A foto foi aproveitada na capa da edição nova, recém-lançada pela Companhia das Letras. Vale mais que mil palavras – embora talvez não valha tanto quanto a Poética anunciada pelo título do livro. É a imagem de uma mulher jovem e altiva, que tem lábios muito bonitos e prometedores, o rosto emoldurado por cabelos revoltos como o ar do tempo. E o tempo eram os anos 1970, com toda a aura de contestação e marginalidade que desperta uma nostalgia (sintomática) arranhando o conformismo dos dias atuais. E a mulher era uma escritora importante, citada em todos os manuais escolares, figurinha fácil da timeline de muita gente boa. E essa escritora se matou aos 31 anos, no auge do reconhecimento, em 29 de outubro de 1983.

Você deve saber, L., que isso basta para fazer da foto uma espécie de ícone. Na era de sua reprodutibilidade digital, ela não precisa de Andy Warhol para ressurgir mil vezes, colorizada ou não, representando muito mais que uma pessoa. Mas, de tudo o que aparece ali, essa pessoa escolheu só o penteado e os óculos, no máximo.

A disputa pelo significado desse ícone é uma armadilha para Ana Cristina. Tudo isso facilita muito que ela seja adorada (e consumida), mas dificulta um pouco que ela seja lida. E olhe que a poesia dela já seria bem “difícil” por si só.

É uma dolorosa ironia que a tragédia pessoal da poeta desapareça, irrecuperável, à sombra do mito trágico do poeta, aquele que sacrifica a própria vida em benefício da Literatura, com a inicial maiúscula do seu nome, L. A procedência romântica desse ideal não poderia contrastar mais com a poética de Ana Cristina Cesar, como você não deixará de notar, se chegar a ler o livro. Sem falar no fato de esse mito ser originariamente masculino: a poesia dela entre outras coisas dá um tapa na cara do sexismo literário, ainda que com “luvas de pelica”.

Também resulta irônico que os aspectos mais exteriores e vistosos da já antiga “contracultura” tenham sido tão completamente assimilados em plena correnteza da cultura dominante, oficial – que é sexy, pop, cool como um marqueteiro de campanha eleitoral ou uma apresentadora do Fantástico. É aquilo que um viés conservador apontaria como vitória dos anos 1970 – mas você não vai cair nessa conversa mole, vai, L.? Talvez seja apenas o gestual de uma rebeldia arruinada, aproveitado hoje para modelar o que se chama de “atitude”: o contrário de um “lobo em pele de cordeiro”.

Mas não foi só o contexto contracultural que se desfez. O interesse público pela poesia e a crítica literária no Brasil também minguaram consideravelmente nesses trinta anos de “presença” ausente de Ana Cristina Cesar. Imagine que, numa sala de espera qualquer, você podia abrir a revista Veja e encontrar um longo artigo assinado por ninguém menos que Cacaso (Antônio Carlos de Brito), um dos interlocutores mais próximos de Ana Cristina Cesar.

“Longo”, pode acreditar, significa bem mais que o dobro das espremidas resenhas que hoje resumem a produção crítica da grande imprensa no país. Daí a terceira grande ironia: que Ana Cristina Cesar seja um assunto acadêmico em ascensão, tema de uma proliferação de teses, dissertações, colóquios e outras cerimônias, que raramente conseguem incorporar alguma fagulha da inteligência provocadora, a contrapelo, da autora que esquadrinham e inspecionam por todos os lados.

Nada mais antagônico à sua poesia do que o academicismo, seus rapapés e suas notas de rodapé. É verdade que ela surgiu num ambiente universitário – o Departamento de Letras da PUC-Rio – e que deu passos importantes para uma possível carreira docente, inclusive um mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ e outro em Tradução Literária, na Universidade de Essex, na Inglaterra. Mas seus maiores mestres naquela altura representavam também eles uma alternativa de resistência à rigidez acadêmica: além do próprio Cacaso, Clara Alvim e Heloísa Buarque de Holanda, entre outros.

Como então está montada a armadilha para Ana Cristina? Diferentes formas de reducionismo ameaçam a efetiva leitura de sua poesia. Quer dizer, a leitura por alguém como você, L., um leitor de poesia.

O mais generalizado se liga de um modo perverso ao fascínio despertado pelo suicídio, tomado como um ato poético, uma espécie de arremate intempestivo para uma obra tão curta quanto a vida – e tão “vivida” quanto escrita. É a redução ao confessionalismo, que banaliza a relação entre o autor e a voz que ele elabora, confundindo o “eu” escrito com o “eu” que assina. A escrita de Ana Cristina Cesar – ou sua “escritura”, se quiserem – seria a expressão de uma vida intensa demais, tão intensa que se tornou insuportável.

Há também a redução ao pop: a escolha de uma linguagem rigorosamente coloquial, a coragem de “contaminar” a poesia com referências explícitas à cultura de massas então execrada pela intelectualidade, o humor despeitado que fustiga os códigos sociais e literários dominantes na época, além da observação mais ferina do cotidiano de sua geração, inclusive a sexualidade – tudo ressurge comprimido na sua superfície divertida, que se pode “ler” casualmente e “curtir”, com a mesma atenção que se dispensa a um anúncio de refrigerante, se não menor.

Esses dois aspectos não excluem uma terceira forma de reducionismo, muito promissora na universidade, onde a poeta é frequentemente encaixada nos chamados “estudos de gênero”. Vem aí a redução ao feminino, com a tentativa de dar à condição de mulher um caráter explicativo. Embora a pertinência desse enfoque não seja tão questionável quanto o fato de essa corrente já ter virado uma disciplina emancipada, uma formação ou especialização. Como pode entender Ana Cristina Cesar quem leu tudo de Adélia Prado, Sylvia Plath, Clarice Lispector e Simone de Beauvoir mas não leu nada de Walt Whitman, Manuel Bandeira, Octavio Paz e Francisco Alvim?

Mas você sabe, L., que a única forma de desarmar a cilada é ler o que está escrito no livro, não o que se espera de antemão que esteja lá. Essa edição nova é um prato cheio para quem quiser fazer uma tentativa. Com curadoria editorial de Armando Freitas Filho, posfácio de Viviana Bosi, “orelha” de Ítalo Moriconi e cuidados textuais de Mariano Marovatto, Poética reúne toda a poesia publicada em vida pela autora, mais o livro póstumo Inéditos e dispersos (também organizado por Armando) e os textos “Antigos e soltos” da misteriosa “pasta rosa” deixada por ela e divulgada só em 2008.

Um leitor como você vai adorar o apêndice, que inclui artigos decisivos das primeiras reações à poesia de livros como Luvas de pelica, de 1980, e A teus pés, de 1982. A impressão que se recebe, percorrendo essa espécie de arquivo, não é de poeira e sim de frescor.

Deslumbrante por si só é o texto “Deslumbramentos com a poesia de Ana Cristina”, de Reinaldo Moraes, publicado na Folha de S. Paulo em novembro de 1982, comentando “fragmentos de história exemplar de moça culta, classée e desbundada” e descrevendo “aquele sorriso claro e delicado dela sob os olhos sarcásticos e ligeiramente devassos” – e é o visual que você pode conferir na foto publicada na “orelha”. Mais antigo, de maio de 1981, é um artigo de Heloísa Buarque de Holanda, publicado no Jornal do Brasil, mostrando como a poeta punha em cheque as simplificações do discurso feminista, ao mesmo tempo em que abria alternativas dentro da mesma luta.

Outra peça importante dessa recolha é o ensaio de Silviano Santiago “Singular e anônimo”, publicado originalmente na Folha em novembro de 1984 e depois incluído em Nas malhas da letra. O crítico faz uma reflexão sobre a leitura de poesia a partir de um trecho crucial do livreto Correspondência completa, de 1979 – quando a personagem-escritora Júlia se queixa de seus leitores Gil e Mary: o primeiro a lê “para desvendar mistérios (…), pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos”; a outra a lê “como literatura pura, e não entende as referências diretas”. Relido hoje, o texto comprova que a poeta já sentia a necessidade de afastar os reducionismos.

O desejo de escapar de um e de outro enquadramento, sem deixar de entrelaçar o vivido com os artifícios da escrita deve ter a ver com o “jogo de esconde-esconde biográfico” ressaltado por Armando Freitas Filho em texto de 1985, assim como com o “desdobramento em mais de uma voz” ou a “poesia-em-vozes” discutidos em ensaio pouco posterior de Flora Süssekind, no livro Até segunda ordem não me risque nada. Daí a incorporação do prosaico, a técnica de mimetizar obsessivamente os gêneros da carta e do diário íntimo, o uso da pictografia, da fotografia e o que mais viesse se não fosse uma brusca interrupção.

Talvez sua tarefa, L., seja tentar ajudar a poeta a realizar o desejo que ela expressa em Luvas de pelica: “falar não me tira da pauta; vou passar a desenhar; para sair da pauta“.

A “pauta” é a armadilha. Desarmá-la requer uma leitura, uma dedicação.

L., my dear, você ainda está aí?

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