Arquitetura imaterial

Colunistas

16.01.12

Quando perguntei recentemente a um arquiteto do Porto, um pouco mais jovem que eu, se ele tinha estudado com o Álvaro Siza, logo torceu o nariz. E eu pus o rabo entre as pernas. Adoro os prédios do Siza. Segundo o meu interlocutor, o Siza foi uma boa solução para os anos 50. Hoje, os problemas são outros. Perguntei que tipo de arquitetura ele fazia. Experimental. Também tenho a maior simpatia por quem tem coragem de se dizer experimental, hoje, marcando presença contra o consenso que associa tudo o que for experimental a anacronismo e fracasso. É o que acontece em literatura. Um escritor que se diz experimental está pedindo para ser ignorado (não por mim, é claro: considero experimental todo escritor digno desse nome, de Melville a Beckett, passando por Kafka e Borges). Mas, pelo que depreendi da naturalidade com que o arquiteto do Porto se definiu, experimental é a nova onda em arquitetura. Perguntei se ele podia me dar um exemplo de arquitetura experimental. “É difícil. Estamos menos interessados nos prédios e mais nos conceitos.” E eu fiquei com vergonha de continuar perguntando.

Da última vez que estive em Hamburgo (antes de voltar à cidade no fim de semana passado), o prédio concebido pelos suíços Herzog e De Meuron para abrigar a nova sede da Filarmônica no antigo porto ainda estava nos alicerces. E de lá pra cá, o custo da obra orçada em 241 milhões de euros teve de ser muitas vezes recalculado. Para cima, claro. O rombo previsto para quando o edifício de 26 andares for inaugurado em maio (com dois anos de atraso) deve chegar a meio bilhão de euros. Dá para entender por que até quem mais simpatizava com o projeto, como a minha tradutora, passou a criticá-lo como um disparate numa cidade que, embora riquíssima, continua assolada por problemas sociais e de integração. Mesmo eu, que não tenho nada a ver com a história, que não gastei um tostão com a obra e sou fã de carteirinha da dupla de arquitetos suíços, de repente senti fraquejar a minha defesa incondicional do prédio gigantesco, desenhado à imagem de um monstruoso navio de vidro, com o topo encrespado como o mar e partes das laterais infladas como velas ao vento, sobre um antigo armazém de tijolos, singrando as águas do Elba, na ponta de um cais proeminente da HalfenCity. De repente, a própria imponência do prédio (a dimensão inumana, mais pra nave extraterrestre do que propriamente pra navio) já não me permitia ver nele outra coisa além das relações entre a arquitetura e o poder. E seria até muito educativo se nas formas se vislumbrasse algum tipo de crítica ou ironia. Os arquitetos dizem que todo o prédio foi concebido em função da música e da acústica (a sala principal deve muito à Filarmônica de Berlim, desenhada por Hans Scharoun, em 1956). Mas no lugar da música eu só via – maravilhado, tenho que concordar (e não é esse o objetivo?) – um monumento ao poder.

Ninguém precisa me explicar que, desde a Idade Média, Hamburgo é uma cidade comercial que tira sua riqueza do porto. Nem que o novo prédio da Filarmônica reflete a potência e a independência dessa situação econômica, geográfica e histórica. Tampouco precisam me dizer que tudo faz parte do mercado, para eu entender que não faz sentido atacá-lo em nome de uma suposta autonomia das artes, ainda mais em arquitetura. O mercado é o lugar-comum. Não há nada fora dele. Mas há diferentes modos de equacionar arte e comércio. E minhas dúvidas em relação à nova sede da Filarmônica do Elba vêm justamente da falta de conflito com que um prédio dedicado à música reverencia o poder do comércio – o que não significa que eu não continue a achá-lo incrível e a concordar que ele engrandece a cidade e que talvez não seja possível fazer de outra forma.

Na entrevista que deu ao site oficial da Filarmônica do Elba, De Meuron disse que o prédio é uma cidade em si, porque reúne, além da grande sala de concertos com capacidade para mais de duas mil pessoas, outras salas menores, um hotel, apartamentos residenciais e uma garagem para centenas de carros. Podia ser pior. Podia ser um shopping center. Mas ainda assim é um conceito um tanto homogêneo de cidade, povoada por uma única classe, que pode pagar os preços dos apartamentos na HafenCity reconstruída (os arquitetos argumentam que incorporaram ao projeto um grande espaço aberto ao público, de onde se terá uma vista privilegiada e gratuita de Hamburgo).

O prédio é uma homenagem ao dinheiro que o construiu – e ao poder da cidade, como as torres medievais de Bolonha e San Gimignano ou os arranha-céus de Chicago e Nova York. Toda grande obra de arquitetura é de um modo ou de outro uma homenagem ao poder que a tornou possível, ao dinheiro, à religião ou ao que quer que seja. Só assim dá para entender, a esta altura do campeonato, o que me disse o arquiteto do Porto. E passa a soar menos absurda a ideia paradoxal de uma arquitetura que, como forma de escapar a esse círculo vicioso, se ocupa do imaterial. E, em vez de construir, se realiza no irrealizável.

, , , , , , , ,