Clique aqui para ler a carta anterior.
Xico,
A tua morena jambo me buliversa os sentidos ainda chacoalhados pelo baticum carnavalesco. Ela me remonta, e remonta é uma palavra boa para que eu me lembre de uma outra, mais clara, uma certa branquela nariguda (ah, as feias, Xico, você precisa experimentá-las em sua fúria para que o outro se esqueça desses detalhes).
A branquela nariguda, um piercing na narina esquerda, era desse maravilhoso jardim das frutas em que você se meteu no carnaval de Olinda. Ela era da espécie laranja-bahia. A propósito: Você já foi à Bahia, meu nego? Você já chupou uma, meu frevolente folião pernambucano?
A laranja-bahia tem aquele umbiguinho saltado pra fora, se você me permite a força do pleonasmo, e era assim que me veio a branquela nariguda para ser desfrutada (ah, Xico, você precisa saber do devotamento à causa de que é capaz a mulher feia no seu esforço sublime para ser entronizada no reino das musas inesquecíveis).
E lá estava ela, e por associação de ideias estou me lembrando desse sucesso carnavalesco “agora eu fiquei doce”, e lá estava ela, fruta permitida, no jardim-pomar que eu mantinha, por acaso semântico no bairro de Laranjeiras, lá no fim do mundo entre as favelas ainda não pacificadas do Rio, bala pra tudo que é lado, uma rua sem saída onde eu abrigava sem preconceito todo tipo de espécie que nos vitamina as veias e põe sentido à existência.
Drummond poetava a necessidade de se buquinar no sebo. Tentava dizer em primeiro plano, numa leitura acadêmica, ser preciso escarafunchar as livrarias em busca daquele livro que ninguém queria e, no entanto, guardava preciosidades em suas páginas pouco folheadas.
Eu acho, meu bom Xico, na simplicidade intelectual que graças a Deus me acomete – enquanto os neo-sertanejos fazem o “Camaro Amarelo”, eu escrevo crônicas sobre a calcinha azul -, eu acho, camarada Xico, que Drummond não estava falando de livro nenhum. Afinal ele é o autor de “a bunda, que engraçada, está sempre sorrindo”. O bardo só pensava naquilo, e, tenho certeza, ao buquinar, na verdade ele batia na mesma tecla que já me levou seis parágrafos desta carta.
Drummond, nas entrelinhas, pedia mais atenção para com as preciosidades que descartamos sem curtir. Na classe infinita de seu prezo à safadeza, ele dizia da sabedoria e da beleza escondidas nas coisas desprezadas.
Eu estou de acordo. Precisamos passar as folhas suavemente – se é o caso de um livro. Perscrutar como se fosse um minerador na gruta escura – se é o caso da mulher feia.
O gesto de buquinar do Drummond, grande Xico, é o que agora estou traduzindo para a nossa correspondência como culto delicado à mulher que o mundo tachou feia apenas porque teve preguiça de fuçar as suas pepitas escondidas. As bonitas que me desculpem, mas as desparagonadas sabem das coisas.
Elas não perdem tempo olhando no espelho como estão fotografando naquela posição xis ou naquela outra que deixa as bochechas no sentido contrário da lei da gravidade. As feias são absolutamente devotadas ao desejo de superarem o handicap estético com que entraram em campo. Querem jogo. Daí em diante, meu bom Xico, é se deixar buquinar neste sebo de delícias, é carnavalizar, ou que outro verbo ela quiser conjugar, a cama, a trama, e o infinito de nós dois. Deixe-se levar pelo baticum. É assim que a bateria da feia toca e, na gritaria das noites de Laranjeiras, acho que a vizinhança não teve do que reclamar. Eu era só “dez, nota dez”.
E assim se passaram muitos anos, pois eu estacionei o meu Camaro amarelo na garagem dela, reverente ao alumbramento constante daquela que o mundo condena, o programa Superbonita não pauta. A dita feia. Fui ao doce-doce-doce que ela entregava a quem se dispusesse provar, o néctar escondido no âmago do seu umbigo laranja-bahia. Fui-lhe cúmplice e ela, ao contrário das outras, sempre batendo a porta, foi-me fiel. “A vantagem da mulher bonita é que ela vai embora”, dizia o nosso nunca demasiadamente citado Antonio Maria. A feia fica, a feia rima com a essência do amor.
Prezado Xico, eu não queria que a nossa correspondência acabasse sem que eu desse esse grito de carnaval tardio. Sei que professas da mesma fé e falta de preconceito. Jambo é jambo, preta é preta, mas a feiosa também faz seu carnaval.
No caso desta que está em tela, a calça Saint-Tropez já saíra da moda havia pelo menos duas décadas, mas a moça não a dispensava. Não tinha a bunda serelepe que costuma acometer a morena jambo. Não tinha o sofá que decora os lábios, e faz sonhar os que dormitam neles, das mulatas. Muito menos lhe acompanhava como acessório o air-bag vulgar, mas maternalmente pacificador, das novas louras siliconadas.
A moça feia, que carregava na cor a transparência da hóstia consagrada e deixava ver através dela o sangue pulsando o hino do Esporte Clube Bahia, aquele do “ninguém nos vence em vibração” – a moça feia apostava tudo na exibição que a calça Saint-Tropez permitia do seu troféu de beleza. Era a moldura por onde exibia a altivez protuberante do umbiguinho laranja-bahia criado sem agrotóxico, fruta e graça nascida das mãos e do regador daquele que, para não lançar seu santo nome em vão, vai aqui declarado apenas como o Sublime.
Ele, o umbigo, despontava orgulhoso naquele paraíso não-católico que ia entre o fim da blusa e a linha do cinto. Ah, Xico, o Murilo Mendes podia ter lá suas razões ao dizer que o mundo começava ao redor dos seios de Jandira, e quem sou eu para corrigir os olhos de um poeta. O mundo começa em algum canto consagrado do corpo da mulher amada. O jambo com que você colore a sua morena inaugura uma nova escola pictórica pós-impressionista. (E o suvaco, Xico, quando um pernambucano arretado, desses sem nojinhos Zona Sul, vai escrever um frevo sobre o santo suvaco delas?)
Por algum tempo eu fui o mais devotado roceiro do planeta, cuidei com carinho e esmero, essa palavrinha tão digna e nunca mais plantada nos textos nacionais – por um bom tempo eu cultivei com duplo esmero a minha horta de laranja-bahia. Sou-lhe saudoso, mas fico feliz em ter-me lembrado dela aqui nesta nossa última carta. Foi bom, Xico. O mundo começava no umbigo saltado pra fora da linda branquela-nariguda, era o açúcar que inspirava os voos do meu combalido beija-flor rubembraguiano.
Abraços.