Boiada
Estou com o coração ferido
De tanto sofrer desilusão
Pinto os troncos caídos
Das árvores partidas no chão.
Pinto os bois deitados
Ruminando sem parar
Pinto os carros quebrados
Cansados de trabalhar.
Os bois que puxaram
Este velho carretão
No matador espicharam
Com uma facada no coração
(José Antonio da Silva)
A pintura se intitula Boiada, contudo os bois são poucos; quatro apenas, e, ao contrário da impressão de força viva que uma boiada poderia causar, eles possuem algo de uma aparição. Não estão atrelados a um carro, não prestam serviços. São um pouco fantasmáticos, aparências sem peso e de pouco volume. Não sabemos se estão em pé ou deitados. Ficam no meio do campo, envoltos na relva, e essa relva parece querer também ajudar a formá-los. Somente a parte superior de seus corpos é visível, a inferior esconde-se nesse capim, o que colabora para dar a esses animais um acentuado efeito de falta de gravidade. Eles são pintados em tons de rosa e cinza azulado e repousam sobre a grama verde, e essa complementaridade confere o contraste mais luminoso presente na pintura.
Tudo nessa paisagem parece um lamento. O passado está morto, e o futuro traz a marca da destruição. Em primeiro plano, deitado por terra, está o tronco de uma árvore, cortada e queimada. Seguem-se outras, numa sequência em perspectiva irregular. Mais à sua frente um esqueleto de boi parece chamar a atenção de três urubus que pousam, dois sobre os troncos decepados, e outro sobre o lombo de um dos animais. Essa presença ostensiva da morte em parelha com a vida, do que existiu casado com o que existe, subtrai dessa paisagem qualquer nota pitoresca. Nem mesmo as três montanhas em tom de rosa no horizonte amenizam essa realidade. Quando as olhamos mais detidamente, notamos que estão também devastadas, restando sobre elas apenas os vestígios da mata extinta. Quem sabe a estrada, que avançando do campo e desaparecendo no horizonte, poderia nos levar para algum outro lugar, talvez uma paisagem mais acolhedora.
A paisagem, para José Antonio da Silva, foi o tema principal. Ele sempre se contou por meio dela. Nas várias entrevistas e livros que escreveu, nunca cansou de dizer que era por ela e com ela que sustentava seu entusiasmo e ânimo de pintor. Por isso era também um crítico feroz da maneira brutal como nossas florestas foram dizimadas: “(…) quando foram derrubar as matas, quando foram abrir nossas lavouras, as nossas autoridades daqueles tempos deveriam criar uma lei de deixar os dez por cento da mata em pé. Assim, hoje nós tínhamos a chuva na época certa, – setembro -, nós tínhamos pássaros e nós tínhamos mata. Foi um erro daqueles tempos”. [1]
A transformação do campo, a derrubada da mata, substituída pela lavoura e pela pastagem, talvez seja, de fato, o que constitui essa “paisagem” tão obsessivamente pintada por Silva. Juntamente com essa transformação da paisagem, viria talvez uma outra maior: a da paisagem social. Assim como a mata foi substituída pela lavoura, o homem do campo, o caipira, viu seu meio social também ser completamente transformado. Antonio Candido aponta para esse ajuste que havia entre as pessoas e o meio ambiente: “A roça, as águas, os matos, encerravam-se numa continuidade geográfica, delimitando esse complexo de atividades solidárias – de tal forma que as atividades do grupo e o meio em que elas se inseriam formavam, por sua vez, uma continuidade geossocial, um interajuste ecológico, onde cultura e natureza apareciam, a bem dizer, como dois polos de uma só realidade”.[2] Silva, salvo engano, foi talvez o artista brasileiro que mais bem traduziu em pintura a experiência de transformação dessa realidade. Esse acontecimento se deve, também, ao fato de Silva ter sido, ele mesmo, protagonista da experiência acima descrita.
A pintura em questão contém, como diz o verso do próprio Silva citado na epígrafe a este texto, essa desilusão; e é exemplar dessa metamorfose. Por isso, também é um tanto alegórica. O pintor não a fez sur le motif, como queriam os impressionistas e os mais típicos pintores de paisagem. É uma paisagem lembrada, da memória, e, sendo assim, sua simbologia torna-se muito mais evidente.
José Antonio da Silva nasceu em uma fazenda perto de Sales Oliveira, no estado de São Paulo, em 1909, e morreu na cidade de São Paulo, em 1996. Foi também, como seus pais, trabalhador do campo por vários anos, acumulando ali vivência e prática da maioria das atividades agropastoris, dos usos e costumes do campo, fator que iria dar base e repertório a todo o seu trabalho futuro. Mudou-se para São José do Rio Preto, onde, antes de se tornar pintor, exerceu as mais variadas atividades – agora já como proletário -, tais como cortador de cana, coveiro e porteiro de hotel. O seu reconhecimento como pintor é bem conhecido. Três intelectuais, Lourival Gomes Machado, Paulo Mendes de Almeida e João Cruz Costa, vindos de São Paulo para julgar as obras inscritas no salão que inauguraria a Casa de Cultura de Rio Preto, “descobriram”, em meio a uma previsível coleção de obras acadêmicas, três pinturas de Silva, que nas palavras de Paulo M. de Almeida, “tinham um certo espírito, uma certa graça” [3] e destoavam daquele rançoso academismo presente na maioria das obras do salão. O pintor tinha nessa época 37 anos, e resolvera pintar, atendendo uma antiga mas sopitada vocação, à revelia de sua família e de seu meio social. Mas, apesar de ser o preferido dos juízes, estes não conseguiram dar-lhe o prêmio principal, que ficou com um artista acadêmico da cidade. Depois disso, conseguiram esses intelectuais levá-lo a São Paulo, onde o artista realizou sua primeira exposição individual, tendo todos os quadros vendidos.
Desde então, passou a ser reconhecido como um dos nossos maiores pintores primitivos, designação que o próprio Silva usava, aceitando-se, um pouco, como o artista que o meio queria ver. Penso que, se por um lado, esse epíteto lhe facilitava as coisas, por outro, também o prejudicava. Se isso lhe dava uma identidade, por outro, limitava-o justamente naquilo que sua pintura tem de melhor: o progresso da própria obra.
Nessa chave, Silva aprendeu muito consigo mesmo, o que o colocaria distante de algumas ideias comuns sobre o que é ou não é um artista puro. Silva respondia mal a toda cobrança de pureza. Parecia compreender que, para além do pintor puro, teria que haver um pintor autêntico. E que, para isso acontecer, não poderia paralisar seu trabalho, dotado de um inquestionável movimento, aberto a várias influências e dúvidas e, principalmente, habitado pela pergunta quanto a seu próprio devir e sentido. Talvez esse aspecto de seu trabalho resulte no que sua produção tem de melhor.
Boiada, de 1955, pertenceria à segunda fase do seu trabalho, se tomarmos como parâmetro a maneira pela qual Theon Spanudis, um de seus maiores incentivadores e críticos, classificou a produção do artista. De acordo com o crítico, essa possuía quatro fases: a inicial seria caracterizada pelo emprego de cores mais escuras, em que as paisagens surgiam envoltas em um clima fantasioso e carregadas de certo mistério; a segunda, que se iniciaria em 1948, sugere um maior lirismo, com cores mais claras, mas ainda com um acentuado tom nostálgico; a terceira, seria a fase do pontilhado. Esta fase durou relativamente pouco, também por causa das críticas que Silva recebeu, nas quais era acusado de estar plagiando Van Gogh, um dos seus pintores preferidos. A quarta e última seria a mais longa, a fase na qual o pintor alcançaria plena maturidade e o domínio da sua expressão.
A qualificação dessas fases, penso, reflete muito da própria história de Silva. Poderia haver correspondência entre o artista iniciante e o estado de suas primeiras pinturas, já impregnadas de lembranças, mas cujo tratamento pictórico ainda se vale de muitos efeitos técnicos, onde valoriza procedimentos mais demorados, passagens mais remorosas, o que ajudaria a dotar esses quadros daquele referido acento de mistério e incerteza. Já na segunda fase, ele se mostraria mais confiante, mas, ainda assim, longe daquela energia transformadora que iria caracterizar a quarta fase, e que marcaria praticamente toda a sua produção madura. A terceira fase, muito breve, aproximou-se de certo pontilhismo meio deslocado, o que talvez explique também sua curta duração.
As obras maduras de Silva possuem um dinamismo muito distinto do que aparece nas fases iniciais. Os temas, por exemplo, continuam os mesmos, mas ele vai cada vez mais se evadindo de uma fatura lenta, em direção a um presente. Ele foi dotando suas obras desse presente, e, por que não, também de uma maior presença. Com o passar dos anos, ele parece não mais sofrer a ação daquele passado, mas, sim, usá-lo como motor para uma pintura mais fluida e dinâmica. Suas cores podem atestá-lo de modo muito mais convincente. Na maturidade, elas ocupam a superfície da tela de maneira franca e desenvolta, tornam-se mais puras e luminosas, passando a ser também protagonistas da cena; e, se antes o artista se valia dos escuros e dos volumes, nessa fase ele valoriza, sobretudo, a luz nascida dos contrastes da cor em si, como também explora de maneira muito mais desinibida as ambiguidades formais entre figuração e abstração, com uma intuição muito grande da autonomia plástica dessas formas.
Aquele “saudosismo transfigurador”, típico do caipira, no dizer de Antonio Candido, vai ganhar em Silva sua contrapartida nos atos resolutos do artista, que vem a pintar com um caráter afirmativo o seu passado. Se Silva pintou o campo em transformação, essa mesma dinâmica encontra-se, de certo modo, processada na sua forma de pintar. Esta se torna cada vez mais decidida, e nisso também podemos notar que o pintor conseguiu entender melhor a dinâmica pictórica de seus dois artistas preferidos: Picasso e Van Gogh.
Na tela em pauta, Boiada, as preocupações de Silva são ainda as anteriores. A aposta numa decisão maior ainda não tinha sido feita. A marca da mudança estaria mais presente no tema – a substituição da mata pela pastagem, por exemplo -, mas é muito forte a presença ainda, de um lamento por tudo isso. O pintor se vale de nuances, de esfumatos, e de uma tinta usada de modo mais leve e diluída. A pintura possui um encanto menos exuberante, e parece nos convidar para a pausa e a contemplação.
Acredito que Silva, a exemplo de muitos outros pintores, e apesar de ter tido uma existência muito rica, foi também, se posso dizer assim, substituindo a vida pela vida da pintura. Vale dizer: ele de fato reviveuna pintura; em particular, quando seu trabalho ganhou aquele referido dinamismo transformador. Nesse momento, o período da tela analisada, ele não tinha ainda convertido plenamente a tristeza em ação. Parece que, nesse momento, a pintura e o mundo da pintura não se tinham ainda aberto totalmente para ele, que continuava assombrado pelo mundo do passado, sem assombrá-lo, por sua vez. Seu poder de homem do campo, de caipira, ainda não se havia metamorfoseado no poder do homem-pintor.
NOTAS
[1] FROTA, Lea Coelho. Mitopoética de nove artistas brasileiros. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1978.
[2] CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.
[3] ALMEIDA, Paulo Mendes de. Folha de São Paulo, 22 fev. 1976. Apud SANTANA, Romildo. Silva: quadros e livros. São Paulo: Ed. Unesp, 1993.