Numa tarde de fevereiro de 1991, o cara saiu da banca de jornal, sentou-se no bar da esquina e começou a ler o gibi que tinha acabado de comprar. Em “Cinderela 1987”, quadrinho estrelado pela turma do Zanardi (era a série predileta do cara), o gostosão Colas (ou Colasanti) seduzia uma garota, convencendo-a a participar da brincadeira do cobertor, espécie de rito de iniciação na escola secundária que todos da turma frequentavam. Ela devia ficar nua e de quatro sob um cobertor e ser apalpada. Se não reagisse, entraria pra turma. A garota, além de apaixonada por Colas, era irmã de Palmiro, inimigo da turma do Zanardi. De debaixo do cobertor, em meio ao burburinho, ela reconhece a voz do irmão: ele acabara de chegar, trazido por Zanardi, que ergue o cobertor e lhe mostra o “presente” em sinal de trégua. Enquanto Palmiro estupra a garota iludida, o cobertor é totalmente arrancado e ele descobre que faz isto com a própria irmã.
Antes de a história se encerrar com Palmiro descabelado pelas ruas de Bolonha em desespero, numa cena noturna com ressonâncias bíblicas, o cara fechou o gibi e pensou: “Nessa o Pazienza passou dos limites”.
Não que o cara (que era eu) não estivesse habituado ao conteúdo regular da Animal (VHD Diffusion), importante revista brasileira de quadrinhos cujos vinte e dois números circularam entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990. Em uma edição anterior, o violentíssimo cartunista francês Vullemin encerrava sua história de guerra com o protagonista, um soldado raso, sendo currado pelo sargento numa trincheira. Tudo porque o soldado, ferido de morte, reclamara que morreria virgem.
Mas “Cinderela 1987”, o quadrinho do italiano Andrea Pazienza (1956-1988), trazia naquela cena passada numa república de estudantes um jogo de submissão e violência reconhecível e bastante típico do comportamento adolescente do período em que o cara estivera na escola secundária, e por isto mesmo mais potente. Não se tratava de algo distante e marcado pelas distorções grotescas do exagero como o final da história de Vuillemin, mas de algo possível, real. Crível. Poderia se dizer até mesmo palpável, com perdão pelo mau gosto do trocadilho, porém a questão de gosto é precisamente o que está em jogo aqui. Pazienza, cujo lema era “A paciência tem limites. Pazienza, não”, havia colocado à prova o gosto de seus clientes, levando-os a outro patamar de discussão moral. Não era pouco, em se tratando de um mero gibi.
O quadrinhista se tornara conhecido através da revista bolonhesa Frigidaire, dirigida por Vicenzo Sparagna, que reunia todo o grupo egresso da efêmera Cannibale, gibi romano de inspiração dadaísta de final dos anos 1970 (o nome foi surrupiado da publicação dirigida por Francis Picabia nos anos 1920), composto por Stefano Tamburini, Massimo Mattioli, Filippo Scòzzari e Tanino Liberatore.
Contudo, Pazienza também vinha do conturbado cenário político de Bolonha, onde estudara na faculdade de artes da universidade e se envolveu com a Autonomia Operaia, movimento antiautoritário e antiparlamentarista que culminaria nas rebeliões de 1977 na cidade. Em sentido oposto àquele originado por estudantes em 1968, o Movimento de 77 foi compelido pela rejeição a qualquer representação de poder ou organização social, do estado aos sindicatos e à igreja, com profunda inspiração anarquista e punk. A Itália de então (como de agora e sempre) não admitia principantes: da combustão espontânea das ruas no início, que promovia ações diretas a favor dos direitos humanos e da liberação sexual e das drogas, promovendo a ocupação das ruas e de prédios abandonados, além da luta feminista, o movimento uniu-se à esquerda institucional representada pelo Partido Comunista Italiano. Logo depois, eventos dramáticos como a expulsão de Luciano Lama, líder sindicalista ligado ao PCI, ao discursar na Universidade Sapienza, levaram a Autonomia Operaia a romper com a esquerda partidária e a “elevar o nível do conflito”. Ou seja, a pegar em armas.
A radicalidade desse movimento culminou nos confrontos sangrentos em março daquele ano nas ruas de Bolonha. Policiais infiltrados assassinaram o militante Francesco Lorusso, causando retaliação. Militantes lançaram coquetéis molotov em um bar de direita, matando um estudante. Com seu progressivo afastamento dos partidos esquerdistas tradicionais, o movimento — simbolizado pelo lema “nem com o Estado, nem com a Brigada Vermelha” — atingiu um melancólico ocaso.
Em um episódio autobiográfico de Le straordinarie avventure di Pentothal, primeira série de quadrinhos publicada pelo quadrinhista (na revista Alter Alter, 1977), um cientista maluco fascista afirma: “Esse Andrea Pazienza é sinônimo de uma nova estratégia. Devemos infiltrá-lo nas fileiras inimigas … bem orientado, ele vai espalhar rapidamente as seguintes características psicológicas na base de nossa ordem democrática: a preguiça, o egoísmo, o medo, a ignorância, situacionismo, carreirismo, falsidades, o descuido, a previsibilidade, a neurose”.
A geração de Pazienza foi marcada por essa derrota ideológica, aderindo ao niilismo de extração punk como forma de reação. O consumo de heroína, combatido anteriormente pela Autonomia Operaia, alastrou-se. O hedonismo desesperado da série de quadrinhos protagonizada por Zanardi, um machista cínico e manipulador, investigou a insinuante presença do mal nas ações cotidianas, no sexo e na falta de sentido das relações completamente desprovidas de afeto, a não ser aquele emanado pela associação masculina em prol da esculhambação mais sórdida. Além do aviltamento despertado pela intenção clara de Pazienza de ofender o público com suas histórias, Zanardi equaciona o final dos tempos à total falta de esperanças que nos conduziria ao estágio seguinte da vida neste planeta tão patético: o politicamente correto, a discoteca, o yuppismo, anos 1980, Reagan & Thatcher, AIDS.
Em 1988, Andrea Pazienza morreu em decorrência de uma overdose de heroina. Havia sido precedido pelo amigo Stefano Tamburini em 1986, morto pelo mesmo motivo. Pazienza tinha 32 anos.
A Editora Veneta acaba de publicar Os últimos dias de Pompeo, novela gráfica póstuma que é considerada o testamento do artista.