O cineasta Heitor Dhalia

O cineasta Heitor Dhalia

Dois filmes, dois cinemas

No cinema

22.06.18

Dois novos filmes brasileiros, duas “escolas” contrastantes de cinema. Ambos falam de tensões e fraturas sociais no Brasil de hoje, mas Tungstênio, de Heitor Dhalia, parte da forma para encontrar seu objeto, enquanto Canastra suja, de Caio Sóh, faz o contrário.

O primeiro, inspirado na premiada história em quadrinhos homônima de Marcello Quintanilha, busca reproduzir fielmente os enquadramentos, as idas e vindas do relato e até mesmo as intervenções do narrador onisciente, que não apenas descreve a ação, mas questiona as motivações dos personagens, dialoga com eles e comenta ironicamente os acontecimentos.

 

 

A história se passa em Salvador e gira em torno de uns poucos personagens: o truculento policial Richard (Fabrício Boliveira) e sua jovem mulher Keira (Samira Carvalho Bento), o sargento reformado do exército Seu Ney (José Dumont) e o traficante juvenil Caju (Wesley Guimarães).

 

Cor e movimento

O presente narrativo, entremeado por rápidos flashbacks, fragmenta-se em vários pontos de vista e concentra-se em umas poucas horas, nas quais Richard, chamado por Caju, tenta prender dois homens que, num bote, praticam pesca ilegal usando explosivos. A tentativa de decalcar fielmente as imagens da HQ é tão ostensiva que, numa visão apressada, a única diferença entre uma coisa e outra seriam as cores, já que os quadrinhos originais de Quintanilha são em preto e branco e o filme de Heitor Dhalia explora de modo expressivo a variação cromática, o brilho e a intensidade das texturas, com uma atenção especial à sensualidade dos corpos.

Mas o que define essencialmente a distância entre os dois meios é o tempo. Se nos quadrinhos estamos diante de imagens fixas que obrigam o leitor a imaginar o movimento e a sua duração, no cinema isso é entregue de mão beijada. O cinema é, por sua natureza, exatamente isso: movimento e duração.

Mimetizar uma história em quadrinhos, de certo modo, significa tentar despojar o cinema de seu caráter ilusionista, isto é, da ilusão que oferece de estar reproduzindo o real tal como ele se desenrola em frente à câmera. Diante desse desafio, o filme Tungstênio não hesita em subverter hábitos e convenções do seu meio, multiplicando os enquadramentos extravagantes (contre-plongées radicais, tomadas oblíquas), os contrastes violentos entre closes e planos extremamente abertos, distorções ópticas do plano, congelamentos da imagem ou alterações de sua velocidade.

O resultado de toda essa operação é visualmente arrebatador, mas tende a esvaziar a densidade dos personagens e de seus dramas, pois a atenção do espectador é atraída a todo momento para as proezas e espertezas estéticas. Isso não é necessariamente um defeito ou um problema: a superfície também tem seu encanto. Mais que isso: chamar a atenção para a natureza da matéria fílmica (movimento e duração), mesmo ao tentar negá-la ou anulá-la, pode ser um modo estimulante de nos fazer pensar no cinema e em sua relação com outros meios de expressão.

 

Canastra suja

O exato oposto é Canastra suja. Realizado com baixo orçamento e em tempo recorde (cinco meses entre a concepção e o primeiro corte), o filme de Caio Sóh retrata os tropeços de uma família de subúrbio carioca à qual se poderia aplicar o clichê “disfuncional”.

 

 

O pai alcoólatra (Marco Ricca) vive às turras com o filho desajustado (Pedro Nercessian), que não estuda nem trabalha e está disposto a fazer qualquer coisa para conseguir dinheiro e sair de casa. A mãe infeliz (Adriana Esteves) busca modos clandestinos de compensar suas frustrações. A filha mais velha (Bianca Bin) namora o amigo negro (David Junior) do irmão, mas flerta com o patrão dentista (João Vancini). Uma adolescente autista (Cacá Ottoni) completa a família.

O roteiro bem urdido amarra os dramas explícitos e ocultos de cada um desses personagens e vai além, semeando falsas impressões sobre os acontecimentos para desfazê-las em seguida, em sucessivas reviravoltas: roubo que não é roubo, gravidez que não é gravidez, incesto que não é incesto.

A astúcia dessas viradas narrativas é tamanha que tende ao artifício e faz fronteira com a manipulação pura e simples do espectador, sem hesitar nem mesmo em lançar mão de um “deus ex-machina” para livrar um personagem da desgraça num momento cruciante.

Essa ocasional artificialidade da construção do enredo é contrabalançada pelo tratamento audiovisual realista, quase bruto, em que prevalece a câmera na mão, por vezes subjetiva (como na primeira sequência, retomada no final), por vezes expositiva, alcançando um frescor e uma aparência de “verdade” reforçados pela atuação naturalista do excelente elenco.

 

Composição precisa

A despeito da aparência de espontaneidade e até de improviso, há inteligência e precisão na dramaturgia e na decupagem das cenas. Uma delas, em especial, é admirável: o longo plano noturno em que o pai alcoólatra, julgando-se traído pelo filho desajustado, invade o jogo de futebol deste último e entra em confronto físico com ele, diante da perplexidade dos outros jogadores. A interação entre a câmera na mão e a coreografia dos personagens é algo que não se vê todo dia.

É possível fazer várias objeções a Canastra suja, além da já citada facilidade das viradas do entrecho. A exposição sucessiva dos podres de cada membro da família, por exemplo, lembra a abordagem cínica do Todd Solondz de Felicidade e Histórias proibidas, com seu inventário de infâmias, ainda que a intenção do diretor Caio Sóh tenha sido a de “trabalhar com o prejulgamento do público”, conforme declarou à Folha de S. Paulo.

A ironia um tanto pesada do falso happy end reforça esse risco e abre um flanco perigoso, em tempos de patrulhas identitárias, ao atribuir ao único personagem negro do filme o papel de curinga que “suja” a canastra familiar e encarna ao mesmo tempo a maior vítima e o único verdadeiro vilão da história. E cala-te boca, para não despertar a ira de outra patrulha, a dos caçadores de spoilers.

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