Vim parar em Bruxelas com uma trupe de teatro. Estão fazendo ações na rua. Eu os acompanho. É uma espécie de pesadelo. Fico sabendo que vão se dividir em três grupos: enquanto uma atriz oferece café e bolachas aos passageiros do bonde 51, que corta a cidade de norte a sul, duas outras se postam no meio do corredor de outro bonde da mesma linha, inamovíveis aos pedidos dos passageiros que querem passar, e um casal de atores se divide entre o bonde e as paradas, ambos enrolados, como múmias mal embalsamadas, em fitas vermelhas e brancas, daquelas usadas pela polícia para isolar cenas de crime e canteiros de obras ou para interromper o trânsito, já não sei – as usadas em cenas de crime não são amarelas e pretas?
No início, a aventura, oscilando entre a pegadinha e o teatro do oprimido, me parece condenada ao fracasso. Sou do tipo fatalista envergonhado. Assim que uma louca começa a gritar com uma das atrizes que se mantêm imóveis bem no meio do corredor do bonde em movimento, atrapalhando a circulação dos passageiros, os olhos do resto da trupe se voltam esperançosos para ela, como se o espetáculo tivesse enfim começado. Não começou. E de todo modo a ideia não é fazer um espetáculo, eles me dizem. Logo descobrem que não era preciso pegadinha nem teatro do oprimido pra fazer a passageira gritar. A mulher é louca. Xinga a atriz de todos os nomes, como podia ter xingado qualquer outra pessoa. Fala de sexo e de máfia, antes de descer do bonde. Fico pensando se tudo não teria passado de uma infeliz coincidência: em vez de louca, a mulher podia muito bem ser apenas outra atriz, de uma trupe concorrente, que tivesse decidido fazer seu exercício de conscientização no bonde, na mesma hora da nossa intervenção. A viagem prossegue. Que é que eu estou fazendo aqui?
Estou sentado diante de um casal de velhos que resmunga a cada vez que o ator enrolado na fita isolante resolve trocar de lugar. A velha olha para mim e balança a cabeça: “Tem gente que não tem mais o que fazer”. Eu concordo.
Para decepção do grupo, ninguém dá a mínima para a ação. E eu acho que é um ponto para a cidade. A indiferença, nesse caso, não é nada além de bom senso. Quando passamos pela parada onde a atriz está enrolada com a fita dos pés à cabeça, atada ao poste como uma Joana D’Arc na fogueira, à espera de alguém para atiçar o fogo, vejo chegar um carro da polícia e os policiais que descem às pressas e atravessam a rua, correndo na direção da atriz. Ao mesmo tempo em que o produtor do grupo, que havia se encarregado de atá-la ao poste, também se apressa para esclarecer a situação e impedir que o caos se instale e a atriz seja presa. O bonde parte, com a outra metade da trupe boquiaberta, debruçada nas janelas, impotente diante do que vai acontecer com a colega. Penso comigo: “Fodeu”.
Só uma hora depois, quando nos reencontramos pra fazer o balanço da experiência, é que vamos saber o que aconteceu de fato com a nossa Joana D’Arc. E é o oposto do que eu esperava. A polícia não tinha vindo prendê-la, mas resgatá-la da punição de algum marido ciumento ou do castigo imposto pelos costumes bárbaros de alguma cultura exótica (o bairro é marcadamente povoado por imigrantes). A autoimolação estava descartada, já que não dava para a atriz se atar sozinha ao poste. Ao saber que ela é atriz, entretanto, a polícia vai embora, desejando-lhe boa sorte no seu trabalho de conscientização/sensibilização.
Prefiro não participar no segundo dia de ações, e acabo perdendo uma comoção: agora, com as atrizes amarradas a postes em diversos pontos da linha do bonde, a população se precipita para salvá-las. E são, na maioria, homens e mulheres muçulmanas que, não concebendo a possibilidade de uma performance, tampouco podem suportar a violência da situação. Num dos casos, é um homem que se aproxima da atriz com uma faca e, em poucos segundos, a liberta do calvário. Em outro, um grupo de homens e mulheres arrancam as faixas com as mãos, diante da imagem insuportável. De nada adianta argumentar que é performance. Essa gente só faz subir no meu conceito. Se, ao contrário do grupo de atores, não reconhecem a performance nem estão interessadas em teatro é porque vivem num mundo em que essas imagens são possíveis.