Boyhood não coube no Oscar

No cinema

23.02.15

Os leitores que acompanham esta coluna já sabem, a esta altura, que não dou demasiada importância ao Oscar. Penso que essa celebrada premiação diz muito mais sobre os valores da indústria do entretenimento e sobre o gosto médio do público americano do que sobre a qualidade dos filmes e profissionais concorrentes.

Dito isso, era mais ou menos previsível que o grande vencedor fosse Birdman, sobre o qual escrevi aqui. Voltaremos a ele, se sobrar espaço. Pois o importante agora é falar sobre o grande derrotado da noite, Boyhood, de Richard Linklater. Dizê-lo “injustiçado” seria conferir à Academia foros de tribunal.

Falou-se muito do inusitado modo de produção de Boyhood, de sua realização ao longo de doze anos com o mesmo elenco principal, sobretudo os dois protagonistas, Ellar Coltrane e Lorelei Linklater, acompanhados em sua evolução da infância à idade adulta. Falou-se comparativamente pouco do resultado, isto é, da narrativa que vemos na tela. E esta é, a meu ver, extraordinária.

Meditação sobre o tempo

O cinema de Linklater pode ser visto como uma meditação in progress sobre o tempo, sobre a duração, ou antes sobre a compressão e dilatação do tempo numa narrativa cinematográfica.

Na trilogia formada por Antes do amanhecer, Antes do pôr do sol e Antes da meia-noite, ele simulava habilmente uma narração em tempo real, sem elipses perceptíveis, como se aquele punhado de horas se passasse “realmente” diante dos nossos olhos. Só que os protagonistas (Ethan Hawke e Julie Delpy) eram os mesmos nos três longas-metragens, realizados ao longo de quase vinte anos. Quem viu cada filme na época de seu lançamento acompanhou o amadurecimento dos personagens (e dos atores) “naturalmente”, no ritmo em que ele ocorria.

Em Boyhood opera-se uma inversão espetacular dessa perspectiva. Trata-se de condensar doze anos de vida em duas horas de narrativa. Confesso que, de tão viciado no modo clássico de narrar (ou melhor, de simular) no cinema a passagem dos anos, eu me peguei muitas vezes esperando em que momento mudaria o ator que encarnava o garoto protagonista – para só depois me dar conta, numa vertigem, de que seria sempre o mesmo Ellar Coltrane.

Elemento de incerteza

Ao colocar no centro de seu projeto duas crianças, cuja evolução física e psicológica era virtualmente imprevisível, Linklater introduziu um elemento de acaso e incerteza raramente aceito numa grande produção hollywoodiana. Os riscos eram enormes, as possibilidades de erro também.

E é isso, de certa forma, que traz vida e frescor a Boyhood. Em vez da camisa de força dos roteiros “bem amarrados” (a expressão já é sintomática), sujeitos às regras dramáticas convencionais, a única constrição, por assim dizer, seria a da própria vida, com seus caminhos inesperados.

A partir de determinado momento, creio, o espectador de cabeça e olhos abertos se descondiciona da expectativa de uma curva dramática tradicional e passa a contemplar simplesmente o decorrer do tempo, a progressão hesitante de uma vida, ou de várias vidas. A carga de verdade daqueles corpos em movimento ganha uma densidade pungente, como eles deixassem de ser personagens para se tornar gente, flagrada num grande home movie.

O efeito só é possível porque os jovens atores Ellar Coltrane e Lorelei Linklater (filha do diretor) conseguem manter zonas de sombra, arestas não aparadas, ambiguidades insondáveis – como são, de resto, as pessoas de carne e osso, especialmente quando em fase de formação, de adequação ao próprio corpo e ao espaço circundante. Nunca se sabe muito bem o que estão pensando e o que vão fazer em seguida.

Curiosidade e descoberta

Para o espectador que embarca na experiência, o filme – que acaba em aberto – poderia continuar indefinidamente. Pois o que nos atrai na tela não é a reiteração de emoções conhecidas, mas a curiosidade pelo que está por vir. “Aprendi com meu filho de dez anos/ que a poesia é a descoberta/ das coisas que nunca vi”, escreveu Oswald de Andrade. É mais ou menos isso o que aprendemos com os meninos de Boyhood.

Por isso é um filme que não cabe no Oscar, festa da repetição do mesmo sob a ocasional maquiagem da “novidade”. Em tempo: em 1948, Alfred Hitchcock (que jamais ganhou um Oscar) rodou um filme extraordinário, Festim diabólico, simulando uma única tomada do início ao fim. Posteriormente, numa autocrítica severa (e injusta), renegou a experiência como um exibicionismo vazio, que não contribuía de verdade para a força e o sentido da obra. Quase sete décadas depois, Iñárritu reinventou a roda e levou o Oscar.

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