Brasília, labirinto sem saída?

No cinema

04.12.15

Numa semana trepidante na política e repleta de estreias nos cinemas, destaco aqui um filme tão oportuno quanto incômodo: O fim e os meios, de Murilo Salles. Aliás, num gesto inédito, o diretor está lançando simultaneamente dois outros trabalhos: os documentários Aprendi a jogar com você Passarinho lá de Nova Iorque, ambos sobre artistas populares (um DJ, uma cantora, um cineasta independente) tentando “se virar” no Brasil atual.

Mas, se a terra treme em Brasília, o filme da hora é O fim e os meios, que acompanha os percalços de dois peixes miúdos – uma jornalista e um publicitário – no mar de tubarões do poder político e econômico. Não é um filme-denúncia, não toma partido desta ou daquela facção, não moraliza: simplesmente apresenta dois personagens “comuns” tragados pelo olho do furacão.

Nas bordas da engrenagem

São eles o jovem publicitário carioca Paulo Henrique (Pedro Brício) e a jornalista Cris (Cíntia Rosa), que só passam a formar um casal depois que nasce a filha deles, fruto de uma relação casual. Eles vão morar em Brasília quando Paulo é convidado a trabalhar de “gestor de imagem” para um velho senador (Emiliano Queiroz) e Cris se transfere para a sucursal brasiliense do seu jornal. Ambos falam em topar um “desafio”, uma das palavras mais faladas no filme, quase um eufemismo para “vender a alma, mas só um pouquinho”.

Cena de O fim e os meios, de Murilo Salles

Não cabe aqui entrar em detalhes do enredo. O que importa é que o jovem casal vai transitar pelas bordas da perversa engrenagem do poder – e sofrer os efeitos psicológicos, afetivos e morais disso. Dinheiro, intrigas, confusão entre o público e o privado, promiscuidade entre imprensa e poder, em suma tudo isso que conhecemos dos livros ou de ouvir falar, só que aqui mostrado “por dentro”, vivido por “gente como a gente”.

A maneira como Murilo Salles encena e filma esse drama não deixa espaço para o maniqueísmo, a identificação com um dos lados, a catarse. Sob um céu permanentemente carregado, uma paleta de cores reduzida quase ao preto e branco (até mesmo quando se filma uma praia paradisíaca do Nordeste), há uma predominância dos planos gerais, em que os personagens aparecem pequenos, como que oprimidos pelo espaço que os engloba. Poucos closes, recusa sistemática do campo/contracampo, raros momentos de câmera subjetiva, quase nenhuma música. Ou seja, nada dos recursos habituais que, na decupagem clássica, induzem à identificação emocional do espectador com este ou aquele personagem.

Desconforto

Tudo é desconforto, como costuma acontecer no cinema de Murilo Salles, em que ninguém é totalmente virtuoso ou totalmente canalha. Inútil tentar buscar aqui referências a personagens individuais da nossa política. Não é um roman à clef. O senador que contrata Paulo Henrique tem um pouco de Sarney, um pouco de ACM, mas vai além desses modelos: é, sim, um coronel nordestino arquetípico, um “faraó embalsamado” da nossa sociedade oligárquica, mas ao mesmo tempo um personagem de carne e osso, que não abre a boca durante todo o filme, mas transmite pelo olhar uma gama enorme de ideias e sentimentos. É quase uma esfinge que nos desafia à decifração. (Diga-se entre parênteses: que ator extraordinário esse Emiliano Queiroz!)

Oriundo da direção de fotografia, Murilo Salles é um cineasta essencialmente visual, isto é, alguém que sabe que o cinema, mais do que com ideias e palavras, se faz com imagens e sons (o que inclui as palavras, mas não se resume a elas). Parece óbvio, mas quando examinamos nossa filmografia política vemos que há, em geral, muito discurso e pouco cinema. E O fim e os meios, filme em que a primeira fala só surge depois de dez minutos (e ainda assim dirigida a um cachorro!), está repleto de imagens fortes e originais: um homem escondido numa laje na cobertura de um prédio em Copacabana, tomando banho na caixa d’água, mijando numa garrafa de plástico ou procurando um canto onde o sinal da internet seja melhor; fogo consumindo malas de dinheiro numa estrada de terra em meio a um canavial; dois casais conversando em volta da mesa numa mansão em Brasília, com o espaço fragmentado e duplicado por espelhos.

Ao controle absoluto da profundidade de foco soma-se uma “profundidade de som” que nada tem de naturalista ou aleatória. Há, por exemplo, uma cena em que Cris conversa com uma possível “fonte” para uma matéria. Os dois estão bem distantes no fundo do quadro, mas ouvimos perfeitamente a conversa, quase como se eles estivessem “grampeados” por aparelhos de escuta. O procedimento nos estimula a imaginar o teor das conversas ao pé do ouvido que vemos à distância nas reportagens televisivas nos espaços do poder em Brasília.

Herança patriarcal

A personagem Cris – jovem, bela, inteligente, altiva, negra – condensa, de certa forma, as principais tensões em curso. Tudo passa por ela, ou antes, a atravessa: o racismo, o machismo, a exploração profissional, toda a herança patriarcal da nossa sociedade. O que provavelmente incomodará muita gente é o fato de que ela não é uma vítima e tampouco uma heroína: é uma mulher plena de fraquezas e contradições. Sua atitude ambivalente diante do homem que a agride sexualmente talvez gere revolta entre feministas mais afoitas. A questão é que ela não está lá para representar a luta das mulheres, mas o drama de uma única mulher, ela própria.

Mais vale, a meu ver, atentar para a sutileza com que é filmada (ou melhor, omitida) a cena da violência sexual propriamente dita. Numa elipse visual, a câmera percorre, em contre-plongée, escadas, forros e tetos da casa, enquanto ouvimos os sons abafados e distantes do casal no ato. Os olhares silenciosos das empregadas mostram que elas também ouviram, e isso é o que importa.

Mais do que na frase grosseira do violentador (Marco Ricca) – “Seu marido te chama de ‘neguinha gostosa’?” –, nosso racismo velado, naturalizado, se revela quando um entregador toca a campainha e diz à protagonista, assumindo que ela seja a empregada: “Entrega para a dona Cris”. “Eu sou a dona Cris”, ela responde, ofendida.

Haveria muito mais a dizer sobre O fim e os meios, bem como sobre os dois novos documentários de Murilo Salles, mas este texto já está longo e é preciso falar de outra estreia importante da semana.

A Califórnia não é aqui

Filmes protagonizados por adolescentes e ambientados em décadas passadas, brasileiros ou não, correm o risco de cair na frivolidade, na idealização nostálgica ou, pior, num bom-mocismo doutrinário. Exceções recentes são o ótimo Depois da chuva, de Cláudio Marques e Marilia Hughes, e o delicado Califórnia, de Marina Person.

Estreia da diretora no longa de ficção (seu filme anterior é um documentário sobre seu pai, o cineasta Luis Sérgio Person), Califórnia traz evidentes traços autobiográficos ao retratar uma garota paulistana de classe média nos confusos anos 1980. A descoberta do amor, o aprendizado do sexo, a dolorosa construção de uma identidade num mundo em transformação, sob a ameaça ainda obscura da Aids e as canções dilacerantes de The Cure, David Bowie, New Order, Titãs etc.

O eixo da narrativa é a relação, em boa parte epistolar, entre a tal garota, Estela (Clara Gallo), e seu tio jovem e libertário (Caio Blat) que mora na Califórnia. Os relatos do tio alimentam a fantasia de Estela, configurando uma Califórnia idealizada como espaço de descoberta, invenção e liberdade. A vinda dele para São Paulo ocasionará um confronto entre o imaginário e o real. O “lado B” da “joyous free and flaming life” revela-se bruscamente – e não é nisso que consiste, no fundo, a passagem da infância à idade adulta? E mais não se pode dizer, sob pena de entregar demais a história.

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