O feijão e o filme

Cinema

07.12.15

Numa loja de dorayakis, uma sobremesa tradicional no Japão, feita de duas pequenas panquecas com um recheio de an, um doce de feijão vermelho. Tokue, uma mulher de pouco mais de 70 anos, mostra ao jovem Sentaro como cozinhar o feijão para conseguir a correta consistência e sabor ao recheio dos dorayakis. É preciso, diz, limpar o feijão antes de levá-lo à panela, manter a água não muito aquecida para não ferir o feijão, e, sobretudo, conversar com ele. Agradecer o longo caminho feito pelo feijão até chegar à panela. Pedir que ele trabalhe bem. Prometer trocar a água de quando em quando para eliminar as coisas amargas que o feijão sofreu ao longo da vida. Para o incrédulo Sentaro, o vendedor de doryakis, Tokue explica que a natureza conversa conosco numa linguagem que não conhecemos; que é preciso estabelecer uma relação harmoniosa com ela. Conversar com os feijões era absolutamente necessário, para buscar um modo de responder ao que a natureza nos diz, e pedir que ela nos desse um suave doce de feijão.  

Cena de Sabor da vida

Suave talvez seja a palavra mais apropriada para definir a história que Naomi Kawase adaptou de um livro de Durian Sukegawa – escritor que trabalhou com ela interpretando um dos personagens de Hanezu (2011). A história e o estilo narrativo de Sabor da vida são mesmo suaves. À primeira vista um pouco mais que suaves: entre os ingredientes do doce de feijão existe uma boa dose de ingenuidade.

Bem entendido, destacar a simplicidade da construção da cena, e a da cena em si mesmo, do imediatamente visível enfim, não quer dizer que o real mérito do filme se resuma à invenção de um espaço ideal, feito só de harmonia e nenhum conflito. Ao contrário, o dia a dia de Sentaro, o vendedor de dorayakis, e Tokue, a cozinheira de pouco mais de setenta anos, é marcado por um drama que, digamos assim para recorrer a um procedimento cinematográfico, se passa fora de quadro. Na imagem propriamente dita apenas uma sombra imprecisa do que ocorre neste fora de quadro. Um cliente nota os dedos deformados na mão da cozinheira, descobre que ela vivia numa colônia de leprosos e rapidamente a clientela, até então numerosa e deliciada com o sabor dos dorayakis de Sentaro e Tokue, desaparece. Logo ele perde a loja e se vê sem trabalho.

A delicadeza da narrativa não esconde a marginalização imposta aos portadores de hanseníase, mesmo depois de descoberta a cura para a doença. O enunciado suave é tão somente um modo de não arrastar o espectador para dentro da situação narrada. Ele não é chamado a sofrer o que os personagens sofrem. Vive e sofre numa outra dimensão, paralela, solidária, mas outra. Não abandona a realidade em que vive para projetar-se na realidade-outra dos personagens. Sua relação com o filme se faz por meio de uma montagem paralela. Nenhuma projeção sentimental na cena, mas nenhum distanciamento dela. Porque permanece em seu lugar, pode apreender melhor a proposta do filme.

Sabor da vida foi feito falar do preconceito ainda existente contra os portadores de hanseníase – essa a questão central do filme, reafirmaram Kawase e seu co-roteirista, Danriu Sukegawa, na entrevista coletiva após o lançamento do filme em maio último, no festival de Cannes. Para evitar um preconceito às avessas, para evitar que os espectadores fossem levados a ver os doentes como vítimas, como incapazes, Kawase e Sukegawa decidiram mostrá-los primeiro como pessoas normais, criativas como a velha cozinheira. Desse modo, antes do leprosário, doryakis para o espectador sentir não a doença, mas o preconceito em torno dela. E sentir também, talvez o que mais importa, o prazer de se encontrar face a uma requintada e sensível construção formal, que conversa com o cinema assim como Tokue conversa com seus feijões.

 

O filme permanece em cartaz no IMS-RJ até seis de janeiro de 2016.

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