André,
Mesmo conhecendo bem Napoleão e Jacinto, nunca tinha te visto como um homem afeito a animais de estimação, gostei de saber. De minha parte, tenho uma longa história com cachorros, sempre tivemos cães no Galera´s Lair, que é uma casa com pátio grande. Tivemos uma setter, vários vira-latas, um trio de beagles que foi bem marcante – eles caçavam gambás, fugiam o tempo todo, eram lindos e fedorentos, daquele tipo mais alto e esbelto, acho que chamam de perdigueiro, e o último deles, a fêmea do trio, deitou placidamente no solzinho de uma tarde de domingo, poucos dias depois que os outros dois morreram, e morreu também, sem doença, sem aviso, apenas deitou de lado com as patas estendidas e se foi, e quando meu pai olhou pela janela e disse que achava que ela estava morta, eu duvidei, realmente parecia que estava apenas tomando sol, ela ainda era saudável e bela, mas creio que não estava interessada em viver sem os outros dois e apagou sem alarde, de uma maneira que até hoje me parece ter sido consciente: vou morrer agora. Acho que era minha favorita, a Brisa. Tinha um olhar inteligente e gostava de uvas.
Hoje mesmo eu estava passeando com o Cardoso pela Redenção e comentei com ele a minha vontade de ter um cachorro de novo, faz muitos anos que não tenho, mas moro em apartamento e levo muito a sério a responsabilidade de criar um bicho num lugar assim, então fico adiando. Não me serve cachorro pequeno, gosto de cachorro médio – nem pequeno nem grande: médio. Também não gosto de tratar cachorro como gente, prefiro eles num pátio ou na rua, sem banho, roendo o que bem entendem. E é curioso como os cães se infiltram nas histórias que escrevo, é algo que ainda estou tentando entender, uma investigação em progresso. Eu era bem pequeno quando meu pai me chamou a atenção para os cachorros de rua, a incrível adaptação deles ao ambiente urbano e aos humanos, e o assunto nunca esgotou pra mim.
Falei em cachorro de rua e em escrever ficção, e com isso lembrei de um negócio legal que gostaria de compartilhar contigo. Duvido que eu consiga transmitir direitinho a experiência de leitura a seguir, mas vou tentar. Uns meses atrás eu estava tomando umas com amigos no Parangolé e passou uma moça vendendo o Boca de Rua, que é um jornal feito por moradores de rua. Eles apuram as matérias, alguns devem escrever sozinhos, outros devem contar com a ajuda de monitores, e o jornal resultante é vendido pelos próprios autores na rua, por um ou dois pilas. Deve ter algo semelhante em São Paulo, não sei, é um projeto bonito. Naquele dia a moça disse que tinha uma edição especial de aniversário, e como sempre eu comprei o jornal.
Uma das páginas apresentava uma história escrita por uma menina de cinco anos identificada como “Steffany, 5 anos”. Antes mesmo de ler, a coisa toda prendeu a minha atenção. No alto, diz assim: “Pingue tinta colorida na folha branca e dobre ao meio. Quando abrir, verá figuras que nunca pensou em desenhar. Depois invente uma história.” Há uma reprodução em tamanho grande da figura assim produzida por Steffany: um borrão estranhamente figurativo que parece uma carranca mista de ser humano com cachorro. O título está em cima, em letras grandes, e é o seguinte (atenção):
Amor em cinco capítulos.
Eu ainda nem tinha lido a história e já estava hipnotizado por aquele arranjo: o borrão carrancudo, os cinco anos da menina, o título curiosamente adulto contendo “Amor” e a instrução “você verá uma figura que nunca pensou em desenhar, depois invente uma história” que parecia suplantar qualquer outra definição do impulso ficcional. Na parte inferior da página, cinco bloquinhos de texto trazendo no topo, em negrito, o número do capítulo e o título, até o Capítulo 5, o último. Saca só o primeiro capítulo:
Capítulo 1
Cachorrão brabo
Este cachorro é muito brabo. Só eu posso encostar nele porque ele não deixa ninguém botar a mão. Ele não gosta das pessoas que não conhece. As pessoas jogam pedras nele porque ele late. A dona criou ele mas ele fugiu. Eu encontrei o cachorrão na rua perdido e peguei para mim.
Talvez seja rudimentar, primário. Não sei o que tu vai achar. De minha parte, pensei que muito adulto querendo ser escritor precisaria de anos de prática e oficina para chegar numa simplicidade tão expressiva, em orações tão definitivas sem nenhum adorno. Repara como o dado intrigante – o cachorrão brabo, por algum motivo, deixa apenas a narradora, a menina, botar a mão nele – está apenas insinuado. E aí vem o segundo capítulo:
Capítulo 2
Carro preto
Tem um cachorro dentro do carro preto. É o meu cachorrão brabo. E tem a dona dele. Ela não dava comida para ele. Por isso ele matou ela. Ela está morta.
Eu sei que crianças de cinco anos podem manifestar ironia e morbidez de maneira espontânea e inocente. Mas uma parte de mim leu isso como, sei lá, uma anotação do Kafka para uma parábola nunca desenvolvida, ou quem sabe uma parábola do Kafka mesmo, redonda e acabada. A entrada misteriosa e gratuita do “carro preto”, a trama nefasta comprimida numa cadeia burocrática de causa e efeito – ela não dava comida, por isso ele matou ela – e essa reafirmação desnecessária, e por isso mesmo ressonante, da morte da dona: “Por isso ele matou ela. Ela está morta.” É isso mesmo. Aceitem. Ela está morta.
Todavia, no Capítulo 3, “Casa antiga”, depois de colocar a morte da dona como esse fato acabado, Steffany muda de ideia e diz que o cachorrão brabo não pode voltar pra casa antiga porque a dona pode ir buscar ele, porque na verdade ela não morreu, só foi para o hospital. Sinto o cheiro de uma intervenção pedagógica nisso, um adulto escandalizado com o tom do relato sugerindo à menina que a morte era de mentirinha. Ou vai ver que Steffany ficou com pena da dona, não se pode saber. O Capítulo 3 termina feliz, o cachorrão gosta da casa nova e ganha comida da menina. “Nós somos amigos”, ela conclui. No Capítulo 4, entra um novo personagem: a borboleta azul.
Capítulo 4
Borboleta azul
A borboleta azul queria muito ser amiga do cachorrão. Ela queria muito e um dia conseguiu. Só que a borboleta era menina e o cachorrão era menino. Então eles namoraram e casaram.
O que chama a atenção aqui, para o leitor adulto – fora que a cena em si é adorável – é o tratamento banal dado a conflitos complicadíssimos. A borboleta queria muito ser amiga do cachorrão, então… um dia ela conseguiu. Mas a amizade não funcionava porque eles eram menina e menino. Sem problema. Eles namoraram e casaram. Pois o que mais eles poderiam fazer, não é mesmo? Não vou me envergonhar na tua frente descrevendo todo tipo de experiência pessoal complexa que esse expediente narrativo – se foi intencional ou não da parte de Steffany, pouco importa – me evocou. Sigamos. Ela encerra:
Capítulo 5
Cachorrinhos voadores
A borboleta e o cachorrão tiveram filhinhos. Os cachorrinhos bebezinhos não gostavam de caminhar. Eles tinham asas. Eles queriam voar.
Eles tinham asas, Conti. Eles queriam voar. Fim. A sequência de diminutivos nos desafia a levar o derradeiro capítulo a sério, mas ainda assim tem algo ali no final que projeta a história para o infinito, mas se mantém coerente com toda a narrativa no tratamento das causas e efeitos: eles tinham asas, portanto não gostavam de caminhar e queriam voar. Não podiam ser amigos: namoraram e casaram. Ela não dava comida: ele matou ela. Por mais mórbido ou fabuloso que seja, tudo é óbvio. E esse é o mini-romance da Steffany. A história que ela inventou depois de ver uma figura que nunca teria pensado em desenhar. O amor em cinco capítulos.
Tenho o jornal guardado, se achou tri, posso te fazer uma xérox.
E acho que nenhum herói meu morreu de overdose. Tenho dificuldade em admirar pessoas que se drogam demais. Alguns que admiro beberam em excesso, chegaram a morrer por isso, mas nenhum é herói. Outros se mataram. Não sei. Teria que pensar melhor nisso.
David Foster Wallace é um candidato a herói. “Because being thirty-four, sitting alone in a room with a piece of paper is what’s real to me.” Quando começo a me fresquear demais, tento lembrar dessa frase dele.
Vou dar um pulo em Sumpa semana que vem. Porque sim. Farei contato.
Abraço,
D. Galera