Correspondência

Os adivinhos sempre dizem a mesma coisa

João Paulo Cuenca

05.03.12

Pouco depois da sua nossa última troca de cartas, subi o rio Mekong do sul do Vietnã até o Camboja. Quando finalmente desci em Phnom Penh, percebi pela primeira vez que, quando você fica horas viajando em barcos de diferentes tamanhos e finalmente atraca num porto, há uma espécie de enjôo retardado. Seu pés estão firmes no chão, mas a calçada vacila, os prédios parecem fora de prumo. A tontura chega em terra firme.

Linda como um neném

Chico Mattoso

23.02.12

Que zica essa da tua febre, hein. Eu tenho pânico de ficar doente no exterior. Mesmo agora, com plano de saúde, morando num país onde as coisas supostamente funcionam, a ideia de precisar ir ao médico me aterroriza. Acho que isso tem origem na minha temporada na França, quando inventei de ir trabalhar numa vinícola durante as férias e o esforço físico foi tão grande (eram oito horas agachado por dia, cortando cachos de uva com um alicate) que acabei comprimindo um nervo e perdendo parte do movimento dos pés.

Educação do olhar

João Paulo Cuenca

14.02.12

Chegar numa cidade é, antes de tudo, aprender a vê-la. É uma educação do olhar. E Hanói não é uma cidade fácil de ver: é confusa, barulhenta, escura, a arquitetura é fragmentada, as ruas são estreitas, os prédios ainda mais, e você tem a sensação de que será atropelado a qualquer momento por uma moto - o número mais comum é o de dois milhões para sete milhões de habitantes, mas eu acredito que sejam mais motos. Todo mundo parece não só ter uma moto, mas também ser a própria moto.

Fim dos tempos: o salgadinho de estrogonofe

Chico Mattoso

08.02.12

Clique aqui para ver a carta anterior                                              Clique aqui para ver a carta seguinte   JP,   Também não exageremos. Pra falar a verdade, aquela conversa sobre estar “vivendo com calma” é mais reflexo de uma vontade que uma constatação empírica. Porque o perrengue não passa, meu amigo. A gente tapa um buraco aqui, abre outro... Continue reading

Macau à flor da pele

João Paulo Cuenca

06.02.12

Chico, em quantos séculos ou décadas as pessoas vão parar de conseguir diferenciar essas cópias dos prédios históricos da cidade? Até que ponto uma igreja em estilo colonial português na Ásia, como a Igreja da Sé, onde entrei e ouvi Roberto Carlos e sua cantilena religiosa pelas caixas de som, é mais autêntica do que qualquer um desses monumentos ao kitsch?

Uma versão desidratada da vida

Chico Mattoso

01.02.12

Essa do grumo de sangue foi demais. Vai direto pro caderninho. Aliás, que belas epígrafes têm teus livros. Não posso dizer o mesmo dos meus, infelizmente. Eles tiveram dezenas de potenciais epígrafes, algumas delas bem bonitas e importantes no processo de escrita, mas na hora da edição final sempre me dá um treco e eu corto tudo. É como se a epígrafe poluísse o livro ? ou, ao contrário, como se o livro tirasse a potência da epígrafe, cujo destino ideal seria ficar boiando no éter, alheia a tudo, emitindo sinais de alta frequência como um sonar ou um golfinho. Enfim. Quem sabe um dia.

Conexão-Macau

João Paulo Cuenca

30.01.12

Imagino que você saiba um pouco de Macau, do Camões em Macau, do Camilo Pessanha em Macau, da arquitetura portuguesa em Macau, das casas de ópio em Macau e dos cassinos em Macau. Caminhar pela ex-colônia portuguesa na China de hoje é uma experiência desconcertante e simbólica. Cada esquina diz muito sobre a Europa e a China deste século em perpétua inauguração, sobre a passagem do tempo - e, claro, sobre Portugal, essa senhora austera que nos olha de cima, ainda que estejamos no topo da escada.

Vida estrangeira

Chico Mattoso

26.01.12

Concordo com isso que você falou sobre morar fora. Tenho certas dúvidas se ao final vou conseguir me entender melhor, mas é fato que as coisas ganham outro tamanho e importância. Sobre o lance da comunicação, acho que o problema é que a gente nunca é a mesma pessoa falando em língua estrangeira, e de repente você se vê flutuando entre duas versões de si, uma delas gaguejante e meio infantilizada, a outra razoavelmente madura, articulada e cheia de coisas supostamente interessantes pra compartilhar com a humanidade.

A primeira noite em Paris

João Paulo Cuenca

20.01.12

O Old Navy segue existindo, sim, com suas bandeirinhas na fachada, balcão sujo, telões de LCD e as pessoas mais desagradáveis e menos Saint-Germain possível. Ou pelo menos existia em março ou abril do ano passado, quando passei uma temporadinha meio trágica em Paris. Eu te contei que foi o primeiro bar que entrei na minha primeira noite na cidade, totalmente por acaso? E que o García Márquez escreveu sobre o Old Navy no seu necrológio para o Cortázar?

Porto Alegre anabolizada

Chico Mattoso

17.01.12

Esse cosmopolitismo fajuto me encanta. Chego a achar que é a única forma saudável de cosmopolitismo, conceito que no mais sempre me pareceu ligeiramente bocó. Chicago é uma espécie de Porto Alegre anabolizada e com trinta graus a menos. Não tem como ser ruim. Meu réveillon foi meio furreca. Saímos com amigos queridos, mas acabamos festejando a virada num clube alemão onde uma banda tocava clássicos do rock em ritmo de polca. Falando parece divertido, mas a cerveja era quente e o clima era mais de festa de firma do que de desregramento e libertinagem.